Sem palavras

Sem palavras

 

A primeira parte do corpo que doeu foi a garganta. Não era uma dor de inflamação, daquelas que costumavam acometê-lo quando era criança, com todos os seus ites incômodos e febris. Mesmo assim, cumpriu o rito: balas de hortelã, colheres de mel, gotas de própolis, pedaços de gengibre – tudo entremeado por muitas pausas para contrações e náuseas. Seguiram-se antiinflamatórios, antibióticos, injeções, além de mais algumas pausas para lágrimas e comiseração. Mito desfeito. A garganta parecia se fechar, espremer-se, como se amídalas, faringe, laringe e não-sei-mais-quê quisessem se fundir numa única indeterminação, maciça, pungente.

Depois veio o formigar na ponta dos dedos. Uma leve cãibra subindo pelas articulações, paralisando os músculos. Em vão tentou se libertar da aflição. Mãos e braços pareciam longos caminhos abarrotados de passos e terremotos; só ele é que não conseguia se mover. Passou horas intermináveis vagando de médico em médico, de clínica em clínica, de hospital em hospital. Pernas cheias de estrada para membros superiores inertes. Nenhum especialista foi capaz de diagnosticar a razão.

Quando o ar não chegou aos pulmões já não havia mais nada. A dor não tinha mais voz, os dedos não tinham mais tinta, a vida não tinha mais verbo. Morreu sufocado de palavras.

 

Táscia Souza

4 Responses

  1. “Morreu sufocado de palavras.” Gostei disso. Muitas vezes nos sufocamos com palavras não ditas quando seria muito simples dizê-las e não se sufocar. Adorei!

  2. Devo confessar que tenho medo de morrer sufocado por palavras. A bem da verdade já tive várias ameaças de AVCs provocadas pelo excesso contido delas…Tenho que procurar um médico!

  3. Pode-se morrer sufocado por palavras, mas sem elas “morre-se muito mais”! Por quantas coisas morremos menos ou mais, e por outras poucas e raras morremos tudo. Com o maior orgulho!