As meninas do 526

As meninas do 526

 

Eu primeiro as ouvi, antes de vê-las. Quando comecei a trabalhar, e passei a pegar o 526, escutei uma cantoria no fundo do ônibus que mais parecia um coro grego desafinado, embora não sei se isso alguma vez existiu. Elas entoavam uma música sertaneja que eu não fazia idéia de quem era. Esse era o ritmo preferido. Às vezes, rolava um funk, outras vezes, um pagodinho. Elas não tinham uma seleção arrumada, muito menos aprumada.

Com a curiosidade aguçada, sempre que podia ficava em pé para observá-las. Eram seis. Só se sentavam juntas, e no último banco, na ‘cozinha’. Falavam sempre alto, como se estivessem num programa de rádio. Elas se chamavam Judith, Carla, Lucinha, Maria Aparecida, Ester e Joana. Todas eram empregadas. Embarcavam no primeiro ponto da periferia e desciam juntas no último. Se eu pudesse, eu as acompanharia até o fim.

Conversando com o cobrador, descobri que o assunto seguia uma linha fixa. Elas comentavam como foi a noite anterior, com seus pais dominadores, ou filhos enjoados, ou maridos exigentes, e tarefas domésticas que se repetiam. Depois fofocavam sobre o que aconteceu no dia anterior (elas voltavam em horários separados) na casa das patroas, sempre com deboche e escárnio. A música vinha para relaxar após esse momento tenso, no qual percebiam e sentiam o abismo social. Por fim, debatiam a vida uma das outras, cada uma dando uma opinião que mais confundia do que ajudava.

Aos poucos, eu e o restante dos ônibus já sabíamos como era cada uma. Judith era a mais religiosa, ia ao culto todo dia. As amigas sempre zoavam que ela estava tendo um caso com o pastor. Se era verdade, eu não sei, só sei que por uma semana ela não foi trabalhar, pois tinha apanhado da esposa do pastor. Quase perdeu o emprego e acabou largando a religião. Virou atéia, cortou os cabelos, parou de usar saia no joelho, e passou a freqüentar os bailes. Ela não confirmava, mas insinuava que cada mês traía o marido com um homem diferente.

Carla era a mais quieta, a mais nova com 25 anos, a sonhadora, ou a mosca morta de vez em quando. Sempre observava, como se estivesse guardando as informações. Tinha muito carinho pelos patrões. Lucinha sempre tirava vantagem das coisas. O filho dela era o mais esperto, a filha, a mais bonita, o marido, o mais amável. Também ficou uns dias sem aparecer na condução, porque quase perdeu o emprego. Aí descobri que ela tinha fama de ladra. Adorava roubar coisas do local onde trabalhava: era uma lata de leite condensado, um amaciante de roupa, um CD. Era a forma de remediar o sentimento de exploração que lhe amargurava.

Maria Aparecida era uma gulosa. No trajeto, ia mastigando. As crianças de quem ela cuidava estavam virando obesas com tanta inventividade na cozinha. Lucinha achava correto o que ela fazia, pois estava prejudicando aqueles que a usurpavam. Já Ester e Judith achavam que ela ia acabar morrendo de tanto comer. Aparecida não achava nada, só tinha prazer comendo. Ela fez o ônibus inteiro rir quando contou que seus filhos saíram de casa, pois foi um dia feliz: sobraria mais comida para si própria.

Ester parecia a mais correta, a mais sensata, a mais realista. Suas opiniões eram as mais condizentes com a realidade. Mas, às vezes, de repente, nas discussões, ficava eufórica e autoritária. Era como se um monstro a dominasse. As outras meninas insinuavam que ela batia nas duas filhas dos patrões. Nunca defini se ela era vilã ou mocinha. E Joana era a mais bonita: morena, quadril fino, traseiro arrebitado. Era a musa de todas, e sempre estava com jóias e presentes novos. Ela desmentia, dizendo que trabalhava por passatempo, já que o marido pagava as contas, mas as colegas afirmavam que ela estava tendo caso com o patrão.

Eu me divertia com seus assuntos. Pelos três anos de trabalho, nunca li um livro, minha atração era escutá-las. Sofri quando Aparecida teve de abandonar o trabalho, pois estava diabética e perdendo o funcionamento do corpo. Achei que o grupo sentiria tanto e não a substituiria. Dois dias foram suficientes para que Vênus fosse incorporada. Ninguém era fã dela, por causa do mau cheiro que tinha logo às sete horas da manhã, mas o grupo era de seis. Isso era imutável.

Infelizmente não pude conhecer a segunda substituta das meninas do 526. Nem agradecê-las pela novela diária que eu acompanhava. Recebi uma proposta irrecusável de trabalho. Perdi toda a confusão em torno de Carla, a que era um anjo. Elas estavam possessas e indignadas, achavam que era traição. Foi o seguinte: a patroa dela morreu de causa desconhecida. Nem passou dois meses, e ela estava noiva do viúvo, e de malas prontas para ser madame. Foi xingada de tanta coisa e até acusada de ter matado a pobre mulher. Pelo que eu percebi, elas tinham orgulho de ser o que eram, de fazer o que as sustentava. Tudo podia ter acontecido, menos uma traição daquele tipo.

 

José Eduardo Brum

3 Responses

  1. Observar as pessoas. Por si só já diz tudo. Retratar com zelo as mazelas da vida… Adorei mesmo!

  2. É tão realista que até me pergunto se não é verdade…

    As quietinhas são as piores, acho que a Carla matou mesmo a patroa e casou com o patrão.