Category Archives: Táscia Souza

Com todos os ites que se possam imaginar.

Me adota aí!

Me adota aí!

Seguindo o bem-sucedido exemplo da campanha de adoção desenvolvida pelo canil municipal, a  biblioteca da cidade também decidiu fazer sua parte em prol de encontrar novas prateleiras para escritores abandonados. Nas redes sociais, uma série de postagens foi feita com o retratinho de cada autor, acompanhado de um chamado: 

“Oi, eu sou a Jane! Sou uma menina inglesa e tenho só 246 aninhos. Assim como minhas personagens, procuro uma casa pra chamar de minha. Me adota?”.

Ou então:

“Oi, eu sou o Joaquim Maria! Tenho quase dois séculos e escrevo livros de porte médio, mas conteúdo elevadíssimo. Sou muito irônico! Me leva pra sua estante?”.

No rol de pobrezinhos à espera de uma leitura, há escritores para todos os gostos: astutos criadores de romances policiais para vigiar sua casa, bravos elaboradores de contos de terror para amedrontar os pensamentos invasores, carinhosos e fofinhos autores de histórias de amor para você nunca mais se sentir só.

Vamos ser amigos?

Táscia Souza

Sommelier de fim do mundo

Sommelier de fim do mundo

Até hoje não experimentei nada como a safra de 2000. Uma produção tradicional, feita com toda a expertise finicultora medieval europeia, uma profecia envelhecida durante centenas de anos… Teve sabor diferenciado, convenhamos, com os pânicos acentuados pela leve gaseificação natural trazida pela perspectiva do bug do milênio. 

Mas isso não significa que a safra de 2012 tenha sido ruim, viu? De modo algum. Apesar de ter sido uma crença escatalógica mais jovem, com algumas centenas de anos menos, foi bem arrojada, demonstrando o potencial dos produtores mesoamericanos na concepção do apocalipse.

Essa safra 20/21 é que não tem condições, né? Colheita muito precoce, pouquíssimo tempo de maturação e de fermentação, muita dificuldade de arejamento, de colocar para respirar… Esse conjunto de características faz com que cada gole desse fim do mundo desça rascante e deixe um sabor muito acre na língua, que perdura por muitos meses, quiçá anos. Não recomendo.

Táscia Souza

O portal

O portal

Fazia tempo que desconfiava que em sua casa habitava também um portal dimensional. A princípio suspeitara que sua localização fosse um dos pisos quadriculados do banheiro, porque era lá que grampos costumavam desaparecer assim que os soltava do cabelo. E não adiantava ajoelhar-se no chão e vasculhar cada centímetro, às vezes munida de uma lanterna. O grampo que ora existira de repente não existia mais, ao menos não ali, como que sorvido para outro lugar.

Aos poucos, porém, percebeu que o portal migrava pelos cômodos. Às vezes se abria no tampo da mesa de estudos, de onde tragava tampas de caneta bic e clipes de papel. Em outras, escancarava-se dentro da máquina de lavar ou da gaveta de roupas íntimas, nas quais pés de meia despareados desesperavam-se solitários sem seus iguais. E havia ainda as ocasiões em que o portal se transformava em buracos de minhoca, quando um elástico de cabelo ou uma nota de dinheiro desaparecidos do fundo da bolsa ressurgiam meses depois, misteriosamente, no bolso da calça jeans. 

Só ainda não soubera explicar — e isso estava em investigação — em que momento, em vez de sugá-la, o portal é que fora parar dentro de sua cabeça, levando embora suas memórias. 

Táscia Souza