Category Archives: Táscia Souza

Com todos os ites que se possam imaginar.

Translação

Translação

Pensei: tudo bem. Pensei: um ano não é muita coisa. Pensei: um ano são só 365 dias e seis horas em torno do sol. E são só 12,36 ciclos lunares. E são só 12 centímetros de crescimento capilar absoluto, sendo que uma parte disso é de pontas duplas e ressecadas e que precisam ser cortadas, de modo que, em termos relativos, o cabelo nem cresce tanto assim. Pensei: um ano pode até ser muito de um parto a um passo, mas é um grandíssimo nada do septuagésimo nono inverno até o octogésimo verão — a não ser, é claro, pela perspectiva de ser vacinado mais rápido. Pensei que então eu poderia conviver com a ideia de adiar nosso primeiro encontro por um ano, esse grande piscar de olhos de um ano inteiro. Que poderia trancar-me por dentro da porta fechada da minha casa numa segunda-feira do meio de março e abri-la na terça-feira em que esse gesto completasse seu primeiro aniversário e só aí, um ano depois, finalmente esbarrar em você. Pensei que você sorriria e diria que tinha esperado esse ano inteiro para me conhecer, mas que tudo bem assim porque um ano não é muita coisa e são só 365 dias e seis horas em volta do sol e só 12,36 ciclos lunares, o que é bem pouco pelo tanto de arrebóis e luas cheias que ainda iríamos ver juntos. Mas agora penso que é de novo uma segunda-feira do meio de março. E penso que estou novamente trancada porta de casa adentro. E penso que, se eu abrir a porta na terça — se, apesar de todas as recomendações contrárias, eu abrir a porta na terça —, a gente talvez, de qualquer jeito, não se esbarre mesmo por aí, enfim. Porque, penso, um ano são também quase 280 mil mortos e nunca saberei se algum deles era você. 

Táscia Souza

A mulher estranha

A mulher estranha

Tem uma mulher estranha na minha casa. Às vezes a vejo do lado de fora, sobretudo à noite. Acendo a luz — da cozinha, do quarto, da sala — e lá está ela me encarando pelos vidros das portas das sacadas e da janela. Noutras vezes, porém, ela não se limita ao exterior e me segue pelos cantos. Dou de cara com ela no banheiro, quando acordo, e levo um susto porque não estava esperando encontrar com alguém ainda de olhos inchados, antes mesmo de escovar os dentes. Ela me segue no chuveiro, e me observa nua do outro lado do box. E é perplexa que a vejo também nua e me constranjo, como se eu é que tivesse invadido sua privacidade, sem licença. Ela fiscaliza das torneiras minhas mãos ensaboadas e das colheres me segreda confissões e censuras. Atravesso o pequeno corredor, observando seus pés tropeçarem pelos quadros apoiados no chão, e fico aflita com a possibilidade de que ela quebre os vidros das molduras com um chute e que se corte. Se me sento ao computador, sua silhueta de sombra me encara de frente, pouco nítida mas vigilante, como numa videoconferência com sinal ruim. E mesmo se pego o celular simplesmente para olhar as horas, é quase como se adivinhasse seus olhos verdes por trás do verde-mar da minha proteção de tela, a única coisa que parece ainda ter proteção aqui.

Táscia Souza

Proibidas convulsões no verão

Proibidas convulsões no verão

É um anticonvulsivante, ela disse, e talvez tenha sido esse prefixo, essa pequena particulazinha indicadora de oposição, que me impediu de convulsionar bem ali. Em vez disso fiquei sentada, na cadeira branca do consultório branco, mostrando só um pouco mais o branco dos olhos ligeiramente arregalados diante do título bordado em seu jaleco branco, enquanto ela despejava que o medicamento em questão, e eu olhando, é usando em tratamento de epilepsia, e eu olhando, mas que se descobriu que off label (foi exatamente assim, eu só olhando) ajuda no controle da compulsão alimentar e consequente perda de peso e… Você precisa pensar?

A pergunta me pareceu justa. É de se supor que uma paciente queira refletir um pouco sobre a ideia de tomar um anticonvulsivante para emagrecer, mas então percebi que a questão era outra quando veio aquele digo, você trabalha com atividades que envolvam raciocínio? Pergunto porque pode acarretar, como efeito colateral, algumas dificuldades cognitivas. Sim, moça do jaleco branco, geralmente eu preciso pensar. Preciso pensar muito. No exato momento, por exemplo, eu tenho uma tese para escrever e entregar daqui a uns meses para ganhar oficialmente o título que você ostenta aí no seu jaleco branco. E talvez fosse até gostar de defendê-la mais magra, ou fosse gostar de a sociedade gostar de achar que eu gostaria de defendê-la mais magra, os gostares meus e da sociedade se misturando até não se saber mais qual gostar e qual vontade é de quem, mas para isso ainda assim preciso escrevê-la, mesmo que a sociedade não goste. Então a gente pode começar com uma dose bem baixa, à noite, para seu organismo ir se acostumando aos poucos, que tal? Toma aqui a receita. Tenho umas amostras grátis aqui também, pode levar. 

Nessa época eu ainda me orgulhava de ser conhecida como uma pessoa inteligente. E de estar escrevendo uma tese, embora uma coisa não implicasse necessariamente a outra. Mas, vejam só, eu tomei. Um quarto da dose dita ideal, toda noite por algumas semanas, e perdi uns dois quilos, obviamente reencontrados depois, e de fato não tive convulsões, o que deve provar que o remédio é eficaz, e os efeitos colaterais não foram tão dramáticos porque não percebi nenhum comprometimento cognitivo nem qualquer ideação suicida, que também estava na bula, eu li depois, a não ser, claro, que conte nesse pacote o fato de aceitar tomar um anticonvulsivante para emagrecer. Provavelmente deve contar. No entanto, quando os dois quilos não viraram três, requerendo medidas mais drásticas na opinião da moça de jaleco branco, saí do consultório também branco com uma receita controlada azul na qual se lia obesidade, palavra mágica que me liberaria, na farmácia, o acesso a algum tarja preta. E então abandonei tudo: a receita no lixo, o remédio na gaveta, a vergonha de colocar um biquíni bem no fundo da minha cabeça. 

Só agora me flagrei pensando, mais de três anos depois, em que dosagens de anticonvulsivantes sociais possivelmente estamos tomando para explicar nossa cognição comprometida, nossa ideação suicida e nosso desejo mórbido de chegar com menos corpos — digo, menos corpos vivos — ao fim do verão.

Táscia Souza