Category Archives: Táscia Souza

Com todos os ites que se possam imaginar.

A cor da virada

A cor da virada

Foi a calcinha, tenho certeza. Eu escolhi cada detalhe. Da roupa. Dos acessórios. Da maquiagem. O vestido branco para a paz, mas com leves fios dourados na trama do tecido, para a prosperidade. O batom vermelho para a paixão. O blush rosado para o amor. A sombra verde para a saúde e o equilíbrio. O anel de turquesa que foi da minha avó, porque dizem que o azul representa a tranquilidade e a abertura para o novo. 

Mas aí teve a calcinha. Tentei todas as cores, mas estavam marcando, entende? Fui sem. Deu no que deu. 

Táscia Souza

Música interrompida

Música interrompida

É por causa do meu nome que não sou musicista. Não por qualquer problema leve de processamento auditivo que na infância me impedisse de diferenciar F de V (esse, na verdade, era meu irmão) e muito menos Dó de Si (embora dó de mim nunca tenha estado em falta). Também não porque meus dedos não se abriam o suficiente para saltar entre teclas longínquas no piano ou executar acordes que nem precisavam ser tão mirabolantes assim no braço do violão. Tampouco por não conseguir cantar minimamente afinada, sempre deixando, em vez disso, a voz vagar ali pelos semitons. Nem por não entender como essa palavrinha tão pequena, esse monossilábico tom, pode classificar, ao mesmo tempo, cores, sons e, às vezes, até pessoas, cheias de suas próprias cores e sons. 

É exclusivamente por causa do meu nome. 

Ou, mais precisamente, por essa primeira letrinha na palavra mais importante da minha certidão de nascimento (e que não é, obviamente, a conjugação em terceira pessoa do singular do verbo nascer, porque se nascer fosse de fato importante a gente não morreria). É por causa do meu nome e de sua primeira letra, esta que me deixou tantas vezes por último em tantas listas, como no dia do teste para o conservatório municipal, quando todas as crianças foram entrando e eu fiquei sozinha numa sala vazia, sem minha mãe nem ninguém, à espera, pelo que pareceram horas e horas e horas de prováveis dez intermináveis minutos. 

Quando a professora de música enfim chamou meu nome, pronunciando aquela primeira letra com o estalo de língua característico, eu já chorava em silêncio. 

Táscia Souza

Batidinhas

Batidinhas

Ela ainda era menina quando descobriu que partezinhas de seu coração batiam em todos os lugares. Se corresse muito durante a brincadeira — como naquele momento em que deixava o esconderijo sob a cama e desabalava-se desesperada para bater as mãos no pique, tentando salvar-se antes de ser pega —, sentia o pedaço maior esmurrar mais forte o peito, enquanto uma outra porção deslocava-se até a garganta e se punha a palpitar ali, em pleno pescoço, quase arrebentando a pele mais frágil. Às vezes, se ficasse tempo demais ao sol, ou no mar, ou sem comer, ou uma combinação de todas essas três coisas (o que era mais comum naqueles dias de férias e praia), bastava chegar a noite para que uma fatiazinha de coração latejasse nas laterais da testa, bem nas têmporas, cujo nome ela só conheceria bem depois de conhecer a dor. Se topasse com o dedinho do pé na quina da mesa da cozinha, despertava o fragmento de coração que morava ali, na região mais baixa de seu corpo. E se pousasse o fura-bolo direito sobre o pulso esquerdo, os dois bocadinhos saltitavam juntos, um por dentro da veia azulada do braço e o outro bem na pontinha do dedo. 

Eram tantas lasquinhas de pulsação que percebia, a cada dia uma descoberta, que ela achava que era isso que os adultos queriam dizer quando falavam de coração partido. 

Táscia Souza