Category Archives: Táscia Souza

Com todos os ites que se possam imaginar.

Vinagre branco

Vinagre branco

Querido amor desencontrado,

faz quase cento e vinte dias que deixamos de nos conhecer. Na próxima sexta-feira você deveria fazer um jantar especial, com a lasanha de berinjela cuja receita sua avó deixou de herança e o vinho italiano que encomendou pela Internet, e me pediria em casamento no meio da segunda garfada. Eu engasgaria e tossiria e espirraria um pouco de vinho na sua toalha de mesa branca e seria obrigada a levantar os braços até desobstruir as vias áreas, morta de vergonha enquanto você sofreria de pavor. Depois do susto, porém, eu te lembraria, passando nervosa um pano encharcado de vinagre branco para limpar a mancha de vinho antes que secasse, de que só estaríamos juntos há quatro meses, desde aquele 17 de março que estava marcado para ser o primeiro dia do resto das nossas vidas. E você perguntaria, sorrindo, qual é a medida de tempo que calcula o amor.

Acontece, meu querido estranho, que há exatos quatro meses eu não tomei um táxi apressada e tampouco você bateu o ponto de fim de expediente com os cinco minutos de atraso necessários para esbarrar em mim no passeio em frente. Desde então, uma vez a cada quinze dias me arrisco na vizinhança, indo até a farmácia da esquina para comprar uma cartela do analgésico que nunca é suficiente nestes tempos de dor. Talvez, numa dessas incursões, eu tenha passado por você saindo da padaria onde nunca chegamos a tomar aquele café, mas que você faz questão de continuar frequentando em sua única visita semanal ao escritório para resolver pendências impossíveis de sanar a distância. Ambos de máscara e preocupados em manter o espaço mínimo de um metro e meio de outros transeuntes, não notamos um ao outro, porque não é possível reconhecer quem nunca se viu.

Com todo o amor que poderia ter havido,

Eu

Táscia Souza

Retrocesso

Retrocesso

Vínhamos progredindo. Era o pior cenário desde a redemocratização e o fascismo bafejava bem na nossa cara, mas havia um avanço perceptível que fazia crer que, se uma parte da humanidade evolui, toda ela o faz também. Com a pandemia, o desastre. E não apenas o escancaramento da nossa brutal desigualdade, mas aquele pequeno bilhete junto à máscara de tecido: “Após lavada, passar com ferro bem quente para ser usada novamente”. Aquele verbo ali. Aquele calor capaz de matar vírus, mas também de derreter a evolução. Agora que tudo voltou ao normal — e com tudo digo até a brutal desigualdade e o fascismo bafejante —, as pessoas de bem estão lá fora, sem as máscaras, mas exibindo suas roupas cuidadosamente desamarrotadas. Depois de tudo, não dava pelo menos para termos abolido o ferro de passar?

Táscia Souza

Juizado de Pequenos Medos

Juizado de Pequenos Medos

Naquele tempo a gente ia acumulando um grande arquivo. Um arquivo kafkiano. Um arquivo escuro, quente e que sufocava quem precisasse entrar e quem dele não conseguisse sair. Um arquivo desorganizado que se estendia de um edifício a outro e a outro e a outro. Um arquivo de processos começados e nunca concluídos. Um arquivo de causas e casos empilhados por corredores estreitos. Labirintíticos. Intermináveis. Um arquivo sinuoso que desembocava em órgãos inesperados — não escritórios ou secretarias de tribunais, mas cérebros, estômagos, fígados.

Nas estantes do arquivo, nas prateleiras, nas pastas, nas células, a gente amontoava cada um dos nossos mais ínfimos desesperos.

Táscia Souza