Category Archives: Segunda opinião

Autópsia

Autópsia

O turno havia começado e nesse dia, em especial, a encomenda parecia grande. Era hora da autópsia. Muitos criticavam seu emprego, mas ninguém sabia o quanto ele adorava cada parte. Exigia muita concentração, pois, assim que desse o primeiro corte, seria transportado para uma nova história.

Começou pelo cérebro, já em avançado estágio de decomposição (desconfiou que o processo tivera início ainda em vida, devido ao grande uso). Nele, além das poucas lembranças que restavam, estavam as fórmulas que criou no trabalho e as frases memoráveis, já patenteadas e em grande sucesso.

Na boca, ainda restava o gosto do último beijo, misturado com o cheiro forte de vinho, café e cigarro. Dos quatro cheiros, não foi possível distinguir qual o havia matado primeiro.

O coração permanecia bonito. Como algo bem cuidado em vida (ou pouco usado) e ainda quente, resquícios de um uso recente.

Mas era no estômago que teve a maior surpresa: ali, misturado com a ansiedade e nervosismos dos dias ruins, estavam, ainda vivas, as borboletas do primeiro e último amor.

Mariana Virgílio

Bizarro

Bizarro

Veja só, em uma certa-feira, nos idos da minha adulta-juventude, voltava eu do trabalho à casa, levado pelos meus pés espremidos nesses sapatos desnecessários e desconfortáveis, inaptos para médias e longas distâncias — por tanto, eu era levado pelos meus pés e pela minha teimosia contumaz; o ponto de ônibus era justamente em frente ao escritório. 

Já quando eu alcançava a Rua Paracambi, desaguou uma óbvia chuva de verão (não notada pela improdutividade no ato de contemplar o firmamento). De impulso, recorri em um salto a um bar que se abrigou ao meu lado. As nuvens não indicavam tanta pressa. 

Observado, porque a camisa azul-gelo destaca o corpo sob as gotas e sob o pano, me sentei com projetada confiança e solicitei a cerveja mais em conta, dentre às maltadas; falei ao telefone como se esperasse alguém, a segunda pseudoligação foi interrompida pela voz e violão, que por sua vez sugeriu a segunda cerveja. A segunda música eu não conhecia, mas, se não estou enganado, o cantor a antecedeu dizendo que era uma releitura de Seja Você, gravada por Pitty.

Heitor Luique

Texto elaborado na oficina “Arquétipos e criação de personagens” realizada no Palavre-se, Tenetehara, agosto de 2019.

 

Depois que conheci Marina Colasanti

Depois que conheci Marina Colasanti

Habituamo-nos ao não, à cara fechada dos colegas de trabalho, às humilhações e aos sapos que nos fazem regurgitar de tanto engoli-los. Assim, aumenta nosso medo da exposição e deixamos morrer o que há de criativo em nós.

Habituamo-nos aos sonhos não realizados, substituídos, esquecidos, e somos obrigados a lidar no dia a dia com as nossas frustrações e as dos outros.

Habituamo-nos à  infelicidade, sim, porque ser feliz, às vezes, é mais difícil. Habituamo-nos a nos propor uma meta. Esforçamo-nos para cumpri-la e, quando chega a hora de gozar da satisfação de tê-la cumprido, já não serve mais, porque existe outra a alcançar imposta pela fabricação de desejos da sociedade capitalista.

Habituamo-nos à fila quilométrica das agências bancárias e à  superlotação do transporte público. Dessa maneira, habituamo-nos à falta de gentileza, à  delicadeza perdida e à humanidade que, cada vez mais, nos escapa.

Habituamo-nos ao trânsito engarrafado, à  buzina indesejada e à fumaça dos carburadores. Assim, deixamos de sentir a poluição, esquecendo-nos de que o monóxido de carbono prejudica nosso sistema respiratório e cardiovascular.

Habituamo-nos ao garoto vendendo bala no semáforo, a fechar o vidro quando ele se aproxima e, assim, fazemos de conta que nossa infância não vem sendo roubada.

Habituamo-nos ao mendigo pedindo comida na rua e a ignorar sua presença, porque assim fica mais fácil suportar nossa falta de solidariedade.

Habituamo-nos à ostentação e à superficialidade das amizades nas redes sociais, que crescem, proporcionalmente, a cada oferta de like sem perceber que, ao mesmo tempo, recrudesce nossa sensação de solidão.

Habituamo-nos, nós sabemos, mas não devíamos. Habituamo-nos para doer menos nossas feridas, mas não devíamos. Habituamo-nos a baixar a cabeça, mas não devíamos. A comer depressa sem saborear o alimento, mas não devíamos. A enxergar a vida passar tão rápido, mas não devíamos. A não dar um beijo ou um abraço, mas não devíamos. A não dizer eu te amo, mas não devíamos. A não resistir, mesmo que fosse preciso. Habituamo-nos, mas não devíamos.

Marcos Araújo