Category Archives: Segunda opinião

Ano novo, remédios novos

Ano novo, remédios novos

Desde que descobriu a passagem de ano como um momento de pedir boas vibrações para o que se inicia, decidiu também pedir a cura para a suas doenças.

Aos 15 anos pediu para a dor de amor, que a afetou quando seu par escolheu outra dama para o baile de debutantes.

Aos 16, suas borboletas no estômago se transformaram em gastrite, e foi por ela que a menina pulou as sete ondinhas no mar.

Aos 17, pediu pelas dores de cabeça, causadas por golpes muito pesados, disfarçados de palavras que ela mal sabia pronunciar.

Na virada para os 18, arriscou-se mais, e pediu a cura para a doença chamada “falta de esperança”.

— E tem cura isso?

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7.

Espero que sim, pensou.

Mariana Virgílio

Clara, como assim?

Clara, como assim?

Clara tinha oito anos quando ganhou um bambolê de presente de sua mãe. A menina, que encantada ficou, nunca mais parou de rodar e rebolar. Cintura, pescoço, braços e pernas. Seu corpo inteiro rodava e rebolava. Clara cresceu, rodando e rebolando sem parar. Procurou uma escola de circo. Pronto! Encontrou um jeito adulto de manter seu bambolear. Passou a se apresentar em festas e eventos. Que vida bacana! “Essa era uma forma de me sustentar, rodar e rebolar!”, pensava ela com alegria.

Sempre com um quê de moderninha e queridinha. Clara era livre. Daquelas a bradar: corpo meu, minha lei! Cansada das imposições da cultura da beleza, deixou crescer pelos no sovaco. Uma rala penugem, que quase não chamava atenção. Estava feliz consigo mesma! Sentia-se libertada. Depilação nunca mais!

Certa vez, ao se apresentar, quando levantava os braços para rodar e rebolar, ouviu: “porca!”, gritou incomodado um misógino barbudo da plateia ao ver os pelos na axila de Clara. “Sua mãe não te ensinou a fazer sua higiene não?”, berrou uma preconceituosa. “Que falta de vergonha uma mulher com sovaco cabeludo!”, escandalizou- se uma conservadora. “Tá querendo ser homem?”, inquiriu um machista.

Assustada com tanta agressividade, cabisbaixa recolheu seu bambolê e parou de rodar e rebolar. Arrasada, não sabia como juntar seus cacos. Ficou despedaçada!. Deixou de sair de casa. Porém, quanto mais o tempo passava, mais aumentava a vontade de rodar e rebolar. Depois de muita insistência, Clara se permitiu voltar a se apresentar, rodar e rebolar. A plateia era formada, na maioria, por meninas.

Vocês deveriam saber que vocês são lindas do jeito que vocês são!, disse Clara antes de começar a rodar e rebolar. Naquele instante, ela entendeu que jamais deixaria de rodar e rebolar. A partir dali, cada apresentação sua seria para dizer aos outros que cada um pode ser o que quiser e ser feliz da maneira que desejar. Ela seguiria pela vida a rodar e rebolar, rodar e rebolar, rodar e rebolar…

Marcos Araújo

Cena

Cena

O barulho de pensamentos alheios se mesclava com a voz do homem imponente que pediu olhos fechados para o brinde. Ela mantinha os olhos fechados à força, mas não conseguiria por muito tempo. Abriu. Olhos arregalados, de criança que espera presente, mas, por dentro, adulto que acorda no meio da noite, pesadelo.

Era curiosidade em ver os olhos fechados dos outros, de ver se havia, como os dela, olhos também abertos. Era profundo, desespero. Sentimento de vulnerabilidade, exposição, perigo.

Olhos abertos, eram só os seus. O homem imponente parecia muito imponente, mesmo com os olhos fechados. Os outros demais rostos, vestidos serenos, cada um deles começou um círculo vicioso que rodava dentro da cabeça dela, que, de tanto questionar “o que eles estão pensando?”, começou a ouvir murmúrios de dor, em um lamúrio barulhento e desorganizado.

Seus dedos magros suavam os dedos gordos que entrelaçavam os seus e ela ficou com medo de que eles percebessem seus olhos abertos, suas mãos suadas, seus pensamentos negros. Fechou os olhos querendo fazer-se parte, fazer-se presente, fazer-se demais. Fazia tanta força para manter seus olhos fechados que não percebeu que o discurso havia acabado, que os muitos olhos estavam abertos agora e só os seus permaneciam fechados.

Os semblantes antes serenos estavam agora assustados. Preocupação era a nova máscara dos rostos. “O que será que ela está pensando?”, eles se perguntavam. E os dedos gordos soltaram seus dedos magros, suados. E tocando o vazio, ela abriu seus olhos, despreparada. Era o começo do jantar.

Tassiana Frank