Category Archives: Segunda opinião

Amor paliativo

Amor paliativo

– Não sei por que os bichos que damos a ele morrem tão rápido. Ele cuida com tanto carinho.

– Ah, Regina, é assim mesmo. Zequinha é um menino muito bom. Atrai muita inveja e os animais morrem para protegê-lo de mau-olhado.

Da sala, de onde ouvia a conversa da vizinha esotérica com a mãe, Zeca partiu desesperado para o quintal. Lá estava o seu zoológico particular, condenado. Por amor, sabia que precisava deixá-lo partir. No mesmo dia à tarde, já havia distribuído os animais entre os vizinhos, excluindo da lista, é claro, os invejosos.

Foram-se os marrecos, as garnizés e as poedeiras, o cágado, os canários, os porquinhos da índia, o hamster, o casal de coelhos, a calopsita e o patinho recém-ganhado. Em cada despedida, um sofrimento. Mas a maior tristeza, a única em que não conseguiu segurar o choro, foi ao entregar o seu amigo mais próximo, o basset pretinho Matias. Ninguém entendia a atitude do menino e ele, fechado que era, também não explicava. Nem os pais fizeram-no voltar atrás.

Com o quintal vazio, silencioso e triste, a agitação do cachorro era o que mais fazia falta. Zequinha pensava nele todos os dias e o ouvia diariamente latindo ao passar pelo seu novo lar a caminho da escola. Pelo menos era um contentamento saber que estava bem. Porém, um dia não o ouviu. Nem no outro. No terceiro sem qualquer sinal, resolveu pular o murinho da casa em busca de informações e encontrou o amigo quieto, deitado num canto, com um machucadinho na cabeça. Quando viu Zequinha, Matias conseguiu agitar o rabo. A patinha também estava ferida. O cachorro emitiu um ruído, o último naquele lugar, e foi levado dali. A casa não sentiu falta.

Depois de curado, Matias parecia estar sempre sorrindo. A felicidade era mesmo grande por ter o amigo de volta e só para ele. Brincavam todos os dias e só se separavam para que Zequinha pudesse ir para a escola. E Zequinha aproveitava e amava seu amigo todos os dias e com o máximo que cabia no coração de um menino de oito anos. Porque Zequinha sabia, mas não podia falar, que cada dia poderia ser o último de Matias.

Marcus Martins

Rouxinol

Rouxinol

“Se a noite fosse feita para dormir ela não seria tão bonita”. Foi esse o argumento que usou quando o médico disse que receitaria um remédio para que ela regulasse o sono. A verdade é que não sofria de insônia, pelo contrário, dormia profundamente durante oito horas ou mais. A diferença é que preferia adormecer durante as manhãs enquanto reservava as noites e madrugadas para viver. Um amigo, certa vez, a chamara de rouxinol. Rouxinol porque, diferente da cotovia que costuma cantar no amanhecer, esse pequeno pássaro de lamento melódico dedica o seu canto à noite. E isso é o que ela era, uma pequena ave noturna cuja música e caça só se realizavam sob o veludo negro. Mas à justificativa poética dela o médico lançou argumentos científicos, intercalando termos técnicos com puxadas de orelha extraídas dos grossos livros de medicina. Nesse embate entre poesia e linguagem objetiva a lírica saiu perdendo e, depois de alguns suspiros, revirar de olhos e entortar de lábios, a moça acabou aceitando a medicação para dormir. Para a noite o sonho, para o dia a vida, assim seria.

Desde então todas as noites ela extraía uma pequena rodela branca da cartela de 30 comprimidos e engolia com um gole generoso de água. Quando voltava a abrir os olhos percebia que a manhã já se intrometia pelo quarto. Assim iniciou-se sua nova rotina, tediosa e diurna, de noites bem dormidas e dias produtivos, plenamente adaptada ao ritmo comum dos homens, esses seres solares. Ou foi o que lhe pareceu, até começar a notar alguns detalhes estranhos: um poema com sua letra deixado em um caderno aberto em cima da mesa, um desenho que não se lembrava de ter feito, uma mensagem enviada do seu celular da qual não recordava, uma ligação… Toda nova manhã, ao acordar, uma alteração quase imperceptível ocorrida durante a noite se fazia notar, fosse um móvel fora de lugar, fosse a louça suja na pia. Não demorou muito para que ela percebesse que, em um estado de sonambulismo induzido pelo remédio, andava à noite pela casa se ocupando das suas tarefas costumeiras, escrevendo, conversando, comendo. Ela, esse pequeno rouxinol, que mesmo envolvida pelo sono artificial fazia da noite o momento do seu canto.

Raíssa Varandas

Que que foi?

Que que foi?

Nem bom-dia, nem boa-tarde, nem boa-noite. Antes da porta fechar, ela já queria saber:

– Que que foi?
– Que que foi o quê?
– Por que tá com essa cara?
– Que cara?
– Essa aí, sei lá…
– Uai, é a minha cara.
– Pode falar. Aconteceu alguma coisa?
– Não.
– Tem certeza?
– Tenho. (primeiro silêncio) E com você, tudo bem?
– Tá. Tô preocupada com a Cris… Sumiu.
– Você ligou pra ela?
– Sim, mil vezes, não atende.
– Desde quando?
– De hoje cedo.
– Ah.
– Que que foi?
– Nada.
– Você não preocupa?
– Não.
– Hum… (segundo silêncio) A Nanda saiu daqui muda. Ela tá muito estranha, você precisa ver. Acho que tá mal com o Leo, pelo jeito.
– Oh! Tava tão feliz… Ela te contou alguma coisa?
– Não, mas dá pra ver.
– Dá pra ver?
– No jeito deles, ué. Tá estranho.
– Pode ser só impressão, fica puxando pra baixo não.
– Quem disse que eu tô puxando? Tá na cara, uai.
– Entendi.
– (terceiro silêncio) Mas você não ia trabalhar a tarde toda?
– Ia. Vou. Mas resolvi passar pra te ver, conversar um pouquinho.
– Por quê? Tem alguma coisa errada comigo?

Mônica Calderano