Category Archives: Segunda opinião

Sabe, vó?

Sabe, vó?

– Como chama mesmo, vovó, aquela coisa que todo mundo já deu e já ganhou?

– Não sei, Maria… dinheiro?

– Não, vovó. Aquela coisa que às vezes a gente quer quando sente dor.

– Remédio.

– Não, vovó! Aquela coisa que a gente diz que dá por outra pessoa mas na verdade dá pra deixar nosso travesseiro mais macio, sabe?

– …Perdão?

– Isso, vó, perdão! O vovô pediu pra você levar isso pra ele lá na sala, depois dormiu.

Louise Nascimento

Quintana

Quintana

para Juca

No início tudo era pedra. Saíam de meus rins como a própria urina e todas as vezes era o mesmo corolário de dor e sangue.

Daí engordei e me disseram que era o tal do hipotireoidismo, não que eu soubesse o que era isso.

Depois veio o olho seco. Parecia que alguém havia descarregado um caminhão de areia neles. Incomodava, me fazia querer chorar, mas eu não tinha uma lágrima que fosse.

Disso para a cegueira foi um pulo. A visão era meio embaçada, mas aos poucos o que era difícil tornou-se impossível. Mal conseguia distinguir a noite do dia.

Depois a surdez, não completa, mas ainda limitante. Quem dera fosse ela seletiva.

A seguir diabetes, picadas todos os dias e eu não mais tinha um dos meus maiores prazeres, o de comer de tudo.

Por último, a artrose. Dor, dia e noite, o tempo todo. Às vezes melhor, às vezes pior, mas sempre ela ali.

Quintana dizia que na vida temos uma única companhia certa, a morte. Ela está conosco do primeiro ao último de nossos dias. Depois de tudo, passei a enxergá-la, dada a licença poética, com candura e saudade. Quando veio, foi como ir passear no sol, algo que sempre gostei de fazer. Fomos de braços dados e conversando fiado.

Guilherme Felga

Começar de novo

Começar de novo

Todo dia era um novo começo! Era disso que ela gostava! De começar! Mas não gostava da sensação de terminar algo. Tinha um quê de despedida e ela não gostava de despedidas. Por isso começou a evitar terminar qualquer coisa que começava.

Primeiro decidiu que não queria se despedir das personagens das histórias que lia, então não terminava os livros. Se despedir de um filme, ou novela então, impensável!! Ficavam pela metade e ela seguia criando infinidades de novas situações para jamais deixar terminar a trama em sua mente.

Depois começou a ficar com indigestão de terminar o prato do almoço, a caixa de bombons, o sorvete da tarde de domingo. Como acostumar com o último gostinho de algo que foi tão bom?!

Aí percebeu que não conseguia terminar uma conversa, um telefonema. Passou a levantar e ir embora quando sentia que o papo estava acabando. No telefone, simplesmente desligava. Os amigos começaram a achar que ela estava estranha, ou que a ligação havia caído.

Começou a ficar obsessiva com começos. Começar era muito bom, parar antes do fim era o êxtase. E sua vida começou a acumular coisas inacabadas. Balas pela metade, contas meio pagas, palavras meio ditas, sonos interrompidos.

Até que um dia se pegou não querendo terminar um suspiro com medo de perder a poesia daquele começo de fim de tarde.

Prendeu o ar.

Parou o tempo.

Elena Duarte