Category Archives: Segunda opinião

Nervosismo sim

Nervosismo sim

– Se joga – ele sussurrava.

Toda vez acontecia isso. Ela travava de tal maneira que não conseguia controlar as ações de seu corpo. A perna bambeava, a mão suava, a barriga doía e a boca tremia.

– Impossível Maria – dizia seu diretor. – Trinta anos que você faz teatro e em toda estreia acontece isso com você.

Nunca deixara de fazer uma peça, nem nunca causou um atraso. Quando tocava o terceiro sinal, fazia tudo perfeito. Mas as duas horas que antecediam este momento eram marcadas por puro nervosismo.

De tanto o diretor brigar, procurou um analista. E apelou até para certos artifícios da medicina tradicional.

Resolveu. Nunca mais se sentiu nervosa.

Mas também nunca mais subiu em um palco.

Com a falta de ansiedade, faltou também o encanto. E o compromisso. Atrasou-se, cansou-se, errou e levou bronca. O nervosismo transferiu-se para as duas horas que antecediam seu momento de dormir.

Mariana Virgílio

Disfonia

Disfonia

Desde novo W. sabia que possuía algo de errado, pois sempre que ia falar era uma outra voz que dizia por ele. A aparente falha de comunicação entre o cérebro e a boca do rapaz era considerada por W. a responsável pelo intrincado tecido de confusões que compunha sua vida. Bastava ver-se diante de um momento crucial para que ele sentisse a hierarquia entre cérebro e boca se inverter de tal forma que, embora a sua mente ordenasse uma resposta, cordas vocais, língua e lábios emitiam outra.

Ainda criança as confusões já se manifestavam. Embora preferisse jogar bola, sua boca sempre concordava com o amigo de que videogame era melhor. Nos aniversários a situação piorava, por mais que desejasse um brinquedo sempre escutava a voz, que se passava como sua, pedindo por outro.  À medida que envelhecia as desconexões entre o querer e o falar se agravavam, interferindo significativamente na vida de W. O rapaz sonhava estudar artes plásticas, mas quando o pai propôs que o filho trabalhasse com ele em sua firma de advocacia a boca de W. respondeu que seria uma ótima ideia e ele, seu cérebro e seu aparelho fonador foram estudar Direito. A tentativa disfuncional de se expressar afetava principalmente as relações de W., pois nos momentos mais inoportunos a voz tomava o controle gerando não apenas situações constrangedoras, mas muitas vezes rompendo laços que o rapaz desejava manter.

Por essa razão, quando começou a ter infecções constantes na garganta, W. acreditou que a fala, aquela presença estranha que sempre se opusera a ele, finalmente começara a atacar seu organismo. Era preciso calá-la ou testemunhar seu corpo sendo inteiramente dominado por essa voz que não era dele. Assim, sentindo as amídalas incharem com a infecção, ele cerrou os lábios. Daquele dia em diante nunca mais falou, fez das letras suas aliadas e da escrita o seu modo de dizer.

Raíssa Varandas

Para viver

Para viver

Oi, tudo bom?!

Tudo joia! E você?

Bem também! O que você faz?

Eu?! Hum… muitas coisas!

Não… o que você FAZ? O que você é!?

Eu… bom… eu posso te dizer que sou feliz!

Aff.. que difícil conversar contigo! Quero saber o que você faz para viver!

Ahhhh… isso?!

É!

Muito simples! O mesmo que tu!

O mesmo que eu!? Como você sabe!?

Uai… Porque é o que todo mundo faz!

Não! Claro que não! Impossível isso!

Impossível é ser diferente!

Não é não!

Então me fala o que você faz para viver!

Eu trabalho num cargo do governo!

— [silêncio]

Por que essa cara de espanto?!

Porque para viver eu respiro, como, durmo e faço as minhas necessidades… Não sabia que se trabalhasse para o governo poderia pular essa parte.

Elena Duarte