Custou a perceber que havia alguma coisa (muito) estranha no ar Custou a perceber que não era uma gripezinha Custou a perceber que precisava mudar de hábitos Custou a perceber que era melhor respirar por debaixo de um pedaço de pano do que não respirar mais Custou a perceber que não era nada demais a mão ficar toda ressecada de tanto passar álcool Custou a perceber que era melhor trabalhar de casa, porque podia fazer isso Custou a perceber que a ameaça era real Custou a perceber que a vida nunca mais seria a mesma Custou a perceber que era uma doença também social Custou a perceber que eram vidas, muito além de números Custou a perceber que não valia a pena arriscar Custou a perceber que não valia a pena passear Custou a perceber que não valia a pena aglomerar Custou a perceber que tudo só estava piorando Custou a perceber que era melhor passar o Natal a sós, se quisesse atravessar outras natividades Custou a perceber que o ano novo não era tão novo assim — e que poderia ser pior — e que seria pior Custou a perceber que um monte de conhecidos estava morrendo — que amigos estavam morrendo — que familiares estavam morrendo Custou a perceber que a população de seu país estava sendo dizimada Custou a perceber que não dava pra ficar bem com tudo o que estava acontecendo Custou a perceber que estava cada dia mais difícil sorrir Custou a perceber que estava cada dia mais fácil chorar e se desesperar Custou a perceber que havia perdido sua humanidade quando perdeu a empatia pelas pessoas Custou a perceber que não queria virar estatística Custou a perceber que não conseguia mais respirar direito Custou a perceber que havia perdido sua vida pra Covid Adoeceu pelo menos umas dez pessoas Matou cinco delas E nem percebeu.
Face ao vis à vis de prédios que compõe a paisagem da minha janela, encontro essa casa. Me lembrei da minha avó, quando recebia a santinha em casa. O recebimento da santinha era um acontecimento: umas dez senhorinhas vinham trazendo a santinha da igreja. Elas rezavam o terço pra Virgem Maria, se despediam da santinha e voltavam no dia seguinte. Todas, todos os dias, no mesmo horário, durante uma semana. Eu detestava a semana da santinha. O som da reza ressoava no forro e era tão alto que eu não conseguia ouvir o som da TV. Durante a semana da santa, nada se podia fazer em casa.
Agradeço esse prazer nostálgico de tatear a memória sabendo que essa casinha casarão, espremida entre prediões de apartamentinhos, não virou uma farmácia, ainda é lar de alguém. Meu pai diz com certa poesia ‘os apartamentos, antigamente, eram casas suspensas. Hoje, não sei o que são’. Olhei para aquela casa com certo pertencimento de quem já viveu em casa de telha e teto de forro. Fico pensando, hoje em dia podemos facilmente quantificar as casas como essa, em que um dia vivemos. Enquanto divago, no prédio do lado direito, vejo uma senhora tomando chá com seu periquito em uma varanda 2×2. E, dois andares acima, um cão sofrido chora um choro doído de quem passa seus dias confinado na varanda de mesmo tamanho, 2×2.
Um carro de som entra na rua. Achei que tocava jingle de campanha eleitoral, mas são cânticos católicos. O pastor da igreja que fica também ao lado direito da casa, embaixo do prédio, não deixa passar ileso nenhum possível fiel. Distribui abraços sem máscara, diz ‘quem tem o Senhor no coração não precisa temer a peste’. Ele está à procura de público para o espetáculo da fé. Acredito que o carro de som dividiu a atenção dos que já eram poucos e o pastor sentiu que precisava reagir. Logo acima da igreja, um menino de aproximadamente 7 anos grita ‘fora Bolsonaro’ no auge de sua fúria infância. Acho que a confusão, a gritaria do pastor somada ao carro de som e o choro do cachorro fizeram com que ele acreditasse que era um panelaço contra o presidente. Eu, aqui da janela, quero gritar ‘fora Bolsonaro’ e também dizer para o pastor que o Senhor não está nas cédulas, mas a confusão é tanta que não sei qual grito calo para que o outro possa sair. Minha mãe me chama para o café. Por alguns minutos, o distanciamento não me pareceu tão social. Não sei, mas ver esse menino gritando da varanda, bem em cima da igreja, faz com que eu me sinta abençoada.