Category Archives: Segunda opinião

Dentes

Dentes

No mesmo dia em que o médico gritou “nasceeeeeu”, outro, lá fora, decretava o lockdown. E nada de visitas com beijinhos na mão, celebrações de batizado e festa de um ano. Vivia realmente isolada. Aos poucos, começou a sentir-se estranha, como se tivesse algo que ninguém mais ali tinha e, por isso, vivia quieta, com a boquinha fechada. 

Os pedidos eram muitos: “Sorri pra mamãe…”, “Sorri pra vovó”, mas ela escondia com medo da vergonha de decepcionar pelo que iriam encontrar os mascarados que a observavam. 

Sentiu-se feliz quando começou a usar a máscara também, não precisava disfarçar ou tentar esconder. Queria até dormir de máscara. Os pais, ainda que receosos, se tranquilizaram com o zelo que a criança tinha, quando nenhuma outra suportava. 

Todo seu incômodo se resolveu somente quando começou na escola. Por um descuido, a coleguinha retirou a máscara e, ao sorrir, viu apontar nela um pontinho branco, igual ao que nascia em si. 

Ufa! 

E foi assim que nunca mais parou de sorrir.

Mariana Virgílio

Coleção coercitiva

Coleção coercitiva

Nunca colecionei nada. Quando criança/adolescente, alguns familiares tentaram plantar em mim esse “hábito”, me dando mini garrafinhas de Coca-Cola em mini engradados, Fofoletes das mais variadas cores, revistas de vôlei. Curtia tudo, mas não era tomada pelo desejo de colecionar. Chegou a pandemia e mudou a vida da gente — a vida da gente que ainda tem vida. Todas as vezes que faço compra, peço logo umas seis, por medo de faltar, já que sou daquelas piradas em evitar o coronavírus de todas as formas. E elas acabaram se acumulando no armário da dispensa. Treze garrafas de álcool 70%. De quatro marcas diferentes. É… virei colecionadora.

Gilze Bara

Olimpo em mim

Olimpo em mim

De repente, as lágrimas surgem. Brotam no coração, que bombeia mais forte e descompassado, e, no instante seguinte, já marejam os olhos. A pele, respondendo aos impulsos, se eriça, enquanto um nó toma conta da garganta. Dias e dias em que esse processo acontece sem aviso prévio. E os culpados são aqueles seres que querem morada no Olimpo. Seres que se expõem, que se superam, que testam os próprios limites, que vivem intensamente a dor e a glória. Seres que não conheço pessoalmente. Alguns poucos, de nome e de vista. A maioria, nem isso. Mas todos me emocionam. Por quê? Porque estão em busca de algo. Porque fracassam, mas lutam. Lutam, sobretudo, contra os próprios limites. Porque se superam. Porque sentem. Porque são outros – e os outros nos plasmam. Ou, pelo menos, me plasmam.

Gilze Bara