Category Archives: Gustavo Burla

São.

Agenda perdida

Agenda perdida

Na sala de reuniões, entrou sem bater e gerou silêncio nos presentes.

– Bom dia, Carlos. O que veio fazer aqui?

– Reunião. Fiquei em dúvida se era 7 ou 8, por isso cheguei às 7h30. É às 8?

– Foi. Semana passada.

– Então posso ir embora?

– Da empresa. Não recebeu minhas mensagens? Por que não atendeu o telefone?

– Ninguém atendeu?

– O celular é seu, esperava que você atendesse.

– Droga, então ninguém pegou…

– Como assim?

– Deixei na rua, como se tivesse caído. Uma pena, era seminovo…

– Carlos, você foi demitido, deveria tirar esse sorriso do rosto.

Sem deixar de olhar para cada um dos ex, sem tirar o sorriso do rosto, sem agenda e sem celular, tomou o rumo de casa feliz por ter mantido o pijama por baixo do terno.

Gustavo Burla

Medo de agulha

Medo de agulha

Tinha pavor, crise de pânico só de olhar os pacotinhos fechados no balcão da farmácia, ficou noites sem dormir olhando para o calendário de vacinação. Véspera do último dia.

Sentou no bar com os amigos e, com vergonha de dizer por que estava ali, foi deixando a prosa correr solta, copo atrás de copo. Gostava de uma branquinha, mais doce, pouco conservada em barril, mais ardência que paladar.

— Pronto. Acabou.

— Acabou nada! Coloca outra dose aí!

Saiu do posto de vacinação como entrou: carregado pelos amigos.

Gustavo Burla

Grafologia

Grafologia

O médico pediu que eu escrevesse umas poucas linhas para especificar meu diagnóstico e aqui estou eu, rabiscando uma folha com caligrafia terrivelmente melhor que a dele, ciente de que virá uma análise mais pautada em pseudociência do que em medicina, embora com a garantia de que vou me divertir com o que ele disser. A não ser que seja pela minha caligrafia equivocada que ele mostrará o distúrbio que o cérebro tenta notificar ao mundo por mal traçadas linhas desde nem eu sei quando e agora virá o ultimato, com direito a anos, meses ou dias de prazo. Há, por outra, a possibilidade de que meu olhar focado neste manuscrito permita ao doutor misturar conteúdos de frascos em uma seringa que em breve me espetará de surpresa e sem me permitir a dor ou o grito, mas aproveito o papel timbrado para rascunhar, tendo minha caligrafia como assinatura, um testamento deixando todos os meus bens, que são meus livros, para… quem lê?

Gustavo Burla