Category Archives: Gustavo Burla

São.

Aquarela

Aquarela

para Moreno, de aniversário

A folhas com desenhos para colorir se misturavam às mãos na mesinha redonda perto do chão, à altura dos artistas. Da caixa de canetinhas e gizes de cera coloridos, o pequenininho escolheu a dedinho o crayon marrom. Girou a mão com o bastãozinho, ameaçou apontar com os dentes e suavemente tentou preencher os contornos do sol.

A idosa ao lado, cuja idade talvez requisesse mais de uma mão, lançou ao ver os primeiros círculos:

– O sol é amarelo.

O baixinho parou no mesmo instante. Com paciência e sem vocabulário, lançou o olhar repleto de argumento para que o pai verbalizasse:

– Esse é moreno.

Gustavo Burla

Contar motoquinhas

Contar motoquinhas

Começou a combater a insônia deixando de lado o celular duas horas antes de dormir. Depois o computador e por fim a televisão. E a leitura. Comprou blackout para isolar as luzes da cidade, tampão de olho e de ouvido, bebia vinho (uma taça, duas, a garrafa) toda noite e nada. Desmaiava e era acordado no meio da madrugada. Rolava na cama, passeava pela casa e um dia sentou-se na sacada para contar quantas motos passavam lá embaixo, na rua. Dormiu.

Os anos de terapia foram taxativos o tempo todo: mude-se para um bairro mais quieto, para o campo. Mudou-se. Mudou de casa, não de hábitos, inclusive o de acordar no meio da madrugada. Sem motos para contar, via o sol nascer.

Gustavo Burla

Saquinho de pipoca

Saquinho de pipoca

Na porta do cinema, sentado na escada de algum lugar, andando durante uma conversa ou depois do expediente a caminho de casa, adorava comprar um saquinho de pipoca.

Veio a pandemia e passou a comer pipoca em casa. Inventou temperos, testou prontos (blarg!), ficou no salzinho básico e na manteiga no mais das vezes. Filme, geralmente filme. Ou série, era o que se fazia na pandemia. Tentou comer pipoca em conversas de vídeo, mas o barulho parecia maior do que o esperado.

Aos poucos, voltou ao trabalho presencial. Recusou por meses os convites para um café ou uma cerveja, tinha receio de tirar a máscara na rua. Os números foram melhorando, a onda de contágio baixando e um dia ele resolveu: vou comprar um saquinho de pipoca!

Tinham jogado o saquinho numa sacola plástica.

Gustavo Burla