Category Archives: Gustavo Burla

São.

Medo de agulha

Medo de agulha

Tinha pavor, crise de pânico só de olhar os pacotinhos fechados no balcão da farmácia, ficou noites sem dormir olhando para o calendário de vacinação. Véspera do último dia.

Sentou no bar com os amigos e, com vergonha de dizer por que estava ali, foi deixando a prosa correr solta, copo atrás de copo. Gostava de uma branquinha, mais doce, pouco conservada em barril, mais ardência que paladar.

— Pronto. Acabou.

— Acabou nada! Coloca outra dose aí!

Saiu do posto de vacinação como entrou: carregado pelos amigos.

Gustavo Burla

Grafologia

Grafologia

O médico pediu que eu escrevesse umas poucas linhas para especificar meu diagnóstico e aqui estou eu, rabiscando uma folha com caligrafia terrivelmente melhor que a dele, ciente de que virá uma análise mais pautada em pseudociência do que em medicina, embora com a garantia de que vou me divertir com o que ele disser. A não ser que seja pela minha caligrafia equivocada que ele mostrará o distúrbio que o cérebro tenta notificar ao mundo por mal traçadas linhas desde nem eu sei quando e agora virá o ultimato, com direito a anos, meses ou dias de prazo. Há, por outra, a possibilidade de que meu olhar focado neste manuscrito permita ao doutor misturar conteúdos de frascos em uma seringa que em breve me espetará de surpresa e sem me permitir a dor ou o grito, mas aproveito o papel timbrado para rascunhar, tendo minha caligrafia como assinatura, um testamento deixando todos os meus bens, que são meus livros, para… quem lê?

Gustavo Burla

Aquarela

Aquarela

para Moreno, de aniversário

A folhas com desenhos para colorir se misturavam às mãos na mesinha redonda perto do chão, à altura dos artistas. Da caixa de canetinhas e gizes de cera coloridos, o pequenininho escolheu a dedinho o crayon marrom. Girou a mão com o bastãozinho, ameaçou apontar com os dentes e suavemente tentou preencher os contornos do sol.

A idosa ao lado, cuja idade talvez requisesse mais de uma mão, lançou ao ver os primeiros círculos:

– O sol é amarelo.

O baixinho parou no mesmo instante. Com paciência e sem vocabulário, lançou o olhar repleto de argumento para que o pai verbalizasse:

– Esse é moreno.

Gustavo Burla