Category Archives: Táscia Souza

Com todos os ites que se possam imaginar.

A milésima primeira noite

A milésima primeira noite

Xerazade era o nome que constava em sua certidão de nascimento, retirado da história de uma rainha persa que a mãe ouvira quando criança e nunca mais esquecera. Rainhas persas eram o mais distante que se podia imaginar da vida de uma mulher naquela comunidade, assim como qualquer história que não fosse o cotidiano pesado de trabalho, necessidade e mesmice. 

Ela, a filha, então já adulta, via-se imitando a heroína que a batizara, contando histórias na madrugada, ininterruptamente, para tentar acalmar o choro infatigável de seu próprio bebê. Quando ele adormecia, numas vezes de acalanto, noutras de exaustão, ela suspirava: menos uma, menos duas, menos mil. O dinheiro da parca pensão que apenas pingava, mesmo depois de envolvidos polícia e processo, se esgotava em igual ritmo, inverso ao crescimento das dívidas com remédio, fralda e leite em pó para compensar o que o estresse roubara do seu.

Faltando apenas 94 dias para o terceiro aniversário do pequeno, quando os jornais anunciaram que o governo decretara o fim do auxílio, o último fio da voz cada vez mais rouca de Xerazade de madrugadas e histórias e choros engolidos se rompeu, restando apenas o som dos gemidinhos baixos da criança, entrecortados de soluço, até cessar. 

Táscia Souza

Existência

Existência

Escreva um livro, plante uma árvore, tenha um filho, foi o que lhe disseram. Decidiu que os três viriam de uma só vez. Enquanto, em outra barriga, o bebê tomava forma para o futuro fôlego, ele colava um mosaico de lâminas de madeira na parede do quarto do escritório transformado em quarto infantil, pedacinho por pedacinho, até o tronco virar pé (e braços e mãos e um corpo inteiro) de folhas amarelas e sonhos da mesma cor. Quer dizer, não exatamente. Os sonhos ele anotava no caderninho de capa de couro, tentando quase em desespero não se esquecer de nada das histórias que um dia aquela criança também iria contar. 

Táscia Souza

Fisioterapia

Fisioterapia

Era uma clínica de reabilitação para quebras em geral. Quebras que tivessem a ver com o sentido de humanidade, quer dizer. Copos quebrados não precisavam de reabilitação, só de vassoura e pá e extremo cuidado para, na pressa, não arrancar sangue de um dedo. Fêmures, patelas, tíbias e fíbulas, porém, tinham lá sua sala específica, onde eram incentivados, mesmo combalidos, a prosseguir a caminhada, assim como quadris quebrados também tinham a sua, na qual tentavam voltar a ter jogo de cintura. Até ombros quebrados, que exigiam extrema paciência — uma paciência que multiplicava as muitas horas de cirugia por semanas e meses e até anos —, tinham um local propício para serem reensinados aos poucos a suportar os pesos do mundo.

Havia, no entanto, amplos salões lotados, mas muito menos bem-sucedidos nos propósitos do lugar. O vasto cômodo dos que quebravam a cabeça. O enorme auditório dos que quebravam a cara. O pátio imenso, descoberto, dos que viam quebradas suas promessas.

Táscia Souza