Category Archives: Táscia Souza

Com todos os ites que se possam imaginar.

Saudade

Saudade

Como é que pode? Como é que pode algo que não se enxerga, que não se toca, que não bate asas, que não tem pernas, que não tem patas, que não se move sozinho, que não se arrasta sobre as superfícies, que não tem células — que não tem nem uma única célula! —, que é só um amontoado de materiais que configuram existências anteriores à consciência, por eras e eras e eras, como é que pode algo assim provocar esse estrago, essa dor, esse mergulhar no próprio subterrâneo, essa asfixia dentro dos próprios pulmões, essa falta de fôlego, esse buscar o ar sem encontrar, esse afogamento nos próprios fluidos, esse afundar-se em lágrimas e ranho, como é que pode invadir nossa vida de uma hora para outra e tomar tudo, e pairar sobre as ruas, e contaminar o cotidiano, e sorrateiramente atingir nossas casas, e penetrar nosso isolamento, e se esgueirar pelas frestas do nosso esconderijo, e romper nossas máscaras, e se apoderar dos nossos órgãos, cada um deles, até que nosso corpo inteiro seja seu refém? Como é que pode algo vindo de lá do outro lado do mundo, algo que nem um ser vivo é, algo que é só uma palavra trazida por colonizadores numa armada de caravelas e naus, que é só um verbete numa língua que se impôs à força sobre todas as línguas que falávamos antes, machucar tanto assim?

Táscia Souza

Quase dois reais

Quase dois reais

Querido amor desencontrado,

o último dia 17 de março estava marcado para ser o primeiro dia do resto das nossas vidas. Às 17h06 eu desceria do táxi em frente ao seu trabalho — que eu ainda não saberia ser o seu trabalho — bem a tempo de vê-lo saindo após bater o ponto cinco minutos depois do fim do expediente. Eu estaria apressada para entrar em casa, no prédio logo adiante, e apenas jogaria uma nota de vinte e um tá-certo ao motorista, dispensando os quase dois reais de troco que me fariam falta mais tarde para comprar um band-aid na farmácia da esquina como pedido de desculpas por ter aberto a porta do carro com força bem na sua cara. A sorte é que você teria dinheiro suficiente e também bondade suficiente para, apesar de eu tê-lo machucado, me convidar para um café. Você descobriria duas coisas com o tempo: que eu odeio café, mas, esquecida da pressa, fingiria gostar naquele dia (e não apenas por culpa); e que eu te machucaria muitas vezes mais ao longo da vida, assim como você me machucaria também.

Agora estamos aqui, impedidos de ferir um ao outro, e também de pedir desculpas baixinho à noite antes de dormir, porque você não teve trabalho naquele 17 de março, nem nos dias seguintes, e tampouco eu pude sair do apartamento desde então. Da janela observo a farmácia da esquina, onde, entre máscaras e álcoois que voláteis desaparecem do estoque recém-reposto, imagino um curativo avulso esquecido numa prateleira.

Com todo o amor que não há,

Eu

Táscia Souza

Literalmente

Literalmente

Foi o tempo de uma distração e o bilhete materializou-se ali, empurrado por debaixo da porta. Bilhete anônimo, como anônima seguiu a rua sem que, pela fresta da veneziana, conseguisse enxergar o mensageiro que o deixara. Em letra cursiva cuidadosa, nem feminina nem masculina demais, o enigma:

“Conheço sua dor porque já estive, literalmente, na sua pele.”

Por um instante buscou pensar quem, na vila, poderia ter passado por um sofrimento semelhante ao seu, mas aquele advérbio perturbava tudo. E entre vírgulas ainda por cima, tornando a coisa toda mais sufocante, enclausurada, como se a própria palavra estivesse presa entre as membranas de uma pele que não era sua.

O bicho-de-pé que pegara no sítio, na infância, certamente estivera, literalmente, em sua pele, sorriu. Um riso nervoso; um riso de estou enloquecendo, eu sei, mas é que deixaram um bilhete absurdo por debaixo da minha porta; um riso de todo impossível porque o bicho-de-pé morrera há muito tempo, trespassado pela agulha de costura da mãe que abrira-lhe um buraco entre os dedos.

Então pensou em outro pé. No pé que roçara o seu, pele na pele, depois de todas as partes, pelos e poros terem feito o mesmo, numa tarde quente dentro de um quarto abafado que ele não habitava mais. Talvez fosse essa dor, a dor do não-mais, a que se referia o bilhete. Ou talvez fosse um recado de outro plano da moça espevitada que uma noite, numa roda de dança, assumira o controle e falara coisas incompreensíveis dentro de sua cabeça.

Nenhum desses pensamentos, porém, conseguia penetrar sua pele de fato como aquele outro ser, aquele ser oculto feito de papel e tinta azul de caneta bic, dizia que fizera. Sem pistas na rua anônima, sem rastros por debaixo da porta, sem descuidos na letra cursiva, o único caminho, decidiu em transe, era rasgar a própria pele, era virá-la do avesso, era examinar célula por célula, descobrindo músculos e ossos e vísceras, a fim de encontrar que pistas, rastros ou descuidos quem sentia sua dor deixara por lá.

Táscia Souza