Category Archives: Marcos Araújo

Acróstico

Acróstico

Bronco
Ordinário
Laranja
Sinistro
Opróbrio
Nefasto
Abrutalhado
Repugnante
Odioso

Palavras retiradas do dicionário pelo moço arrependido, para nomear aquele que agora considerava inominável. Já não conseguia pronunciá-lo e começou a renegá-lo!! Bradava aos conhecidos que não era “vaca de presépio”. Passara a madrugada à procura de sinônimos. Olhos de insônia, arregalados, medrosos!!! Sentia-se cego também, pois havia percebido que nunca prestara, de fato, a atenção nos sinais que estavam ao seu redor.  Muitos tentaram lhe avisar, mas ele preferiu tapar os ouvidos. Muitos lhe falaram sobre a necessidade de estudar, pesquisar, analisar, comparar, mas ele só pensou que já sabia o bastante. Agora descobria que, se tivesse lido o suficiente anteriormente e conhecesse mais sinônimos, talvez não estivesse mergulhado em meio a

Contrição
Úlcera
Lamentação
Penitência
Arrependimento

Marcos Araújo

Depois que conheci Marina Colasanti

Depois que conheci Marina Colasanti

Habituamo-nos ao não, à cara fechada dos colegas de trabalho, às humilhações e aos sapos que nos fazem regurgitar de tanto engoli-los. Assim, aumenta nosso medo da exposição e deixamos morrer o que há de criativo em nós.

Habituamo-nos aos sonhos não realizados, substituídos, esquecidos, e somos obrigados a lidar no dia a dia com as nossas frustrações e as dos outros.

Habituamo-nos à  infelicidade, sim, porque ser feliz, às vezes, é mais difícil. Habituamo-nos a nos propor uma meta. Esforçamo-nos para cumpri-la e, quando chega a hora de gozar da satisfação de tê-la cumprido, já não serve mais, porque existe outra a alcançar imposta pela fabricação de desejos da sociedade capitalista.

Habituamo-nos à fila quilométrica das agências bancárias e à  superlotação do transporte público. Dessa maneira, habituamo-nos à falta de gentileza, à  delicadeza perdida e à humanidade que, cada vez mais, nos escapa.

Habituamo-nos ao trânsito engarrafado, à  buzina indesejada e à fumaça dos carburadores. Assim, deixamos de sentir a poluição, esquecendo-nos de que o monóxido de carbono prejudica nosso sistema respiratório e cardiovascular.

Habituamo-nos ao garoto vendendo bala no semáforo, a fechar o vidro quando ele se aproxima e, assim, fazemos de conta que nossa infância não vem sendo roubada.

Habituamo-nos ao mendigo pedindo comida na rua e a ignorar sua presença, porque assim fica mais fácil suportar nossa falta de solidariedade.

Habituamo-nos à ostentação e à superficialidade das amizades nas redes sociais, que crescem, proporcionalmente, a cada oferta de like sem perceber que, ao mesmo tempo, recrudesce nossa sensação de solidão.

Habituamo-nos, nós sabemos, mas não devíamos. Habituamo-nos para doer menos nossas feridas, mas não devíamos. Habituamo-nos a baixar a cabeça, mas não devíamos. A comer depressa sem saborear o alimento, mas não devíamos. A enxergar a vida passar tão rápido, mas não devíamos. A não dar um beijo ou um abraço, mas não devíamos. A não dizer eu te amo, mas não devíamos. A não resistir, mesmo que fosse preciso. Habituamo-nos, mas não devíamos.

Marcos Araújo

Pássaro sem pouso

Pássaro sem pouso

O repórter deixou a redação com a incumbência de trazer para o jornal uma reportagem sobre moradores de rua.  O editor havia recebido uma denúncia. Na rua tal, num bairro de classe média, os residentes não sabiam mais o que fazer para afastar aqueles novos vizinhos tão indigestos. 

Pardos, maltrapilhos, mal cheirosos, às vezes desbocados, eles emporcalhavam a via pública. Maculavam o endereço nobre. Uma mulher, que não suportava mais abrir a janela e se deparar com barracas de papelão, vasilhames espalhados e cobertores pendurados em muros alheios, já havia batido de porta em porta, reivindicando a cada morador da rua (estes sim eram de verdade os donos do lugar e não os outros, os moradores de rua) que não dessem o que comer àquele bando de desocupados (na verdade ela os chamava de vagabundos, mas, para manter a classe diante dos vizinhos, achava chique usar eufemismos). 

“Sem comida pra eles é claro que vão embora”, raciocinava a mulher, que, de tão seca, esquecera que solidariedade é um compromisso pelo qual as pessoas se obrigam umas às outras e cada uma delas a todas. 

Ao chegar ao local, o jornalista teve receio. Seria hostilizado pelos moradores de rua? Escondeu seu relógio e celular no bolso da calça. Pensou em abordar os mendigos, oferecendo dinheiro para afastar qualquer possibilidade de ataque. Sentiu vergonha de pensar assim. “Cadê minha humanidade?”, advertiu-se. 

Mas não foi preciso tática  especial. O gelo foi quebrado por meio de um assovio. Do banco da pracinha, um mendigo, de sorriso quase vazio, chamou o repórter. Contou que, depois de receber o que comer, solidariamente, de alguns moradores, arrumava seus pertences, que não eram muitos, e passava o dia na praça. Quando estava muito frio ou chovendo, ele se mudava para debaixo de uma marquise. 

Ele já não se lembrava mais há quantos anos vivia nas ruas. A memória era falha, mas disse que viera da roça. “Minha família nunca teve casa própria. Éramos muito pobres. Por isso, não tenho para onde voltar”, relatou. Ele ainda contou que já estivera em abrigos da Prefeitura, mas não gostou. “Eles proíbem a gente de passear e eu adoro passear”, ressaltou, lembrando que não era escravo das horas. “Mas um pássaro sem pouso e desapegado”. O jornalista voltou ao jornal e, no lugar da reportagem, entregou ao seu editor uma poesia sobre a liberdade!

Marcos Araújo