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O crime da meia kendall

O crime da meia kendall

Ela acendeu um Derby. Sob a luz da lâmpada de vapor de sódio, dava para ver que usava bustiê prata, short rosa e salto alto vermelho. Não era bonita, nem feia. Para o gasto, como dizem os seres estúpidos. Ela tinha o suficiente para despertar a cobiça dos homens e a maledicência das mulheres. A presença dela naquela esquina era quase mística. Não tinha vergonha de exercer a profissão conhecida como a mais antiga do mundo. Estava na vida, porque, além da dela, tinha outra boca para alimentar em casa: uma filha de cinco anos. 

Ao longo de sua parca existência não teve oportunidade de aprender outro ofício. Mas estava apaixonada. Seis meses de cliente fixo até surgir a proposta de tirá-la do meretrício. Casamento! O rapaz não possuía bens, porém era dotado de ciúme que beirava a violência. 

Quando a madrugada se rompia, ela não suspeitava do destino que lhe seria imposto. Só pensava em completar a féria. Ao começar outro cigarro, alguém chegou…

A jovem não teve tempo de pedir clemência. Ao amanhecer, seu corpo foi localizado em um terreno aberto, debaixo da carroceria de um caminhão. De acordo com a Polícia Militar, o lugar era utilizado como ponto de prostituição e de uso de drogas. Foi atingida por golpes de pedra na cabeça. Misericórdia! Seu rosto perdeu as feições. Ao lado do cadáver, camisinhas usadas. Há a hipótese de que ela tenha sido vítima de violência sexual. O short estava na altura dos joelhos. Além da possível motivação passional para o crime, a polícia ventilou à imprensa uma possível dívida de drogas. 

Um detalhe chamou a atenção de jornalistas que cobriram o crime: a jovem usava uma meia-calça, que deixava suas pernas ainda mais belas. Nunca se soube a verdadeira identidade do autor de tal atrocidade, apesar das especulações. Sendo a vítima uma pobre diaba, o inquérito ficou engavetado e conhecido como o misterioso crime da meia kendall, imortalizando-a.

Marcos Araújo

Catarse

Catarse

Ele vivia deprimido. O sono só vinha à base de antidepressivos, depois de, resistentemente, apagar a tela luminosa. Até que se deu conta de que desperdiçava tempo demais na internet. Sem reparar como havia acontecido, tinha se afastado da família e dos amigos. Uma lástima!

Percebeu que há muito tempo não sentia o ardor do sol sobre a pele, a brisa ao andar de bicicleta, a alegria de bater papo na calçada de casa até tarde da noite, a boa companhia de um livro. Havia se perdido!

Tomou consciência de que aquela vida on-line jogada na sua cara e na das outras pessoas era rasa demais. Exposição de futilidades, ostentações e arrogâncias. Decidiu-se: excluiu sua conta do Facebook.

Desde então os emojis viraram emoções reais. Os likes, abraços apertados. Cada post, afeto a ser partilhado.

Reencontrou-se! Fluoxetina, Paroxetina, Citalopram, Escitalopram e Sertralin. Todos desceram pela privada! O sono voltou a chegar, mansinho, a cada página virada.

Marcos Araújo

Sem chances

Sem chances

Valdinei tinha 20 anos quando seu corpo franzino foi encontrado com sete marcas de tiros, numa banca de areia no Rio Paraibuna, na altura do Bairro Industrial, na Zona Norte. A morte do rapaz foi noticiada num canto de página. Era só mais uma nas estatísticas que não paravam de crescer. Assassinatos de jovens negros não despertavam interesse. Enquanto se matavam entre si a sociedade ignorava. Mas o que jornal não sabia, nem teve vontade de apurar era que, naquele dia, Valdinei fora pai pela primeira vez.

Dez horas antes de morrer, Juliana, uma adolescente que ele conheceu numa festa funk, havia dado à luz uma menina. O nome escolhido para a neném foi Edilaine, uma homenagem a Edilson e Elaine, pais de Valdinei mortos em uma tragédia familiar. O rapaz foi criado pela avó depois que o pai fora preso por assassinar sua mãe, quando tinha pouco mais de um ano. A violência doméstica é algo comum em ambientes regados a álcool, drogas e falta de dinheiro.

Valdinei sempre pareceu ser um bom menino enquanto estava crescendo. Não sonhava em ser advogado, engenheiro, médico ou outra carreira que necessitasse de diploma universitário. Como os outros garotos da rua, queria ser jogador de futebol. Mas, quando fez 14 anos, a vontade de ter algo maior do que aquilo que sua avó podia comprar, fê-lo desvirtuar do caminho. Na hierarquia do tráfico só não foi dono de “boca”.

Astuto, mudava de função rapidamente. Agora, tinha a responsabilidade de guardar a droga e distribuí-la. Naquele dia, que seria o seu derradeiro, depois que deixou mulher e filha na maternidade, Valdinei voltava para casa a fim de fazer seu último “corre”.

Com o dinheiro do serviço, compraria um berço para o bebê e mudaria de vida. Almejava ser honesto, arrumar trabalho e ser o pai que nunca tivera. Estava cansado da vida louca no crime! Todavia, no meio do caminho, foi interceptado, na subida do morro, por dois homens ocupantes de uma motocicleta. A dupla pertencia a um grupo rival que há tempos cobiçava o ponto de venda de cocaína. Aquele que estava na garupa da moto sacou um revólver da cintura e fez vários disparos na direção de Valdinei.

Quando o primeiro tiro rasgou sua pele e atravessou sua região torácica, ele sentiu um gosto amargo na boca e um frio absoluto invadir sua carne. O rosto de sua filha surgiu na sua frente antes de seus olhos se fecharem. Seu corpo foi recolhido e jogado no porta-malas do carro que dava cobertura aos motoqueiros. Na calada da noite, seu cadáver foi desovado às margens do Paraibuna, que, junto com as capivaras, testemunhou o crime, uma vez que, na rua onde os disparos foram efetuados, o medo fazia dos moradores cegos, surdos e mudos. Valdinei não teve chance de ser pai, de se redimir, nem de ser manchete de jornal. Edilaine perdeu sua chance de ter pai.

Marcos Araújo