Cortes transformados

Cortes transformados

Marcílio achou que perderia sua alma aos poucos. A primeira vez se deu nos corredores, por meio de um ato jocoso de seus pares. Assim que saiu do banheiro, escutou:

“Você já foi a um enterro de bicha?”- O pescoço virou automaticamente a tempo de ver a negação de cabeça. – “Que classe mais desunida!”. – O piadista e o interlocutor caíram na gargalhada. Ele teve o primeiro corte em si.

Dias depois, presenciou um assédio moral. Ou sexual. Podia ser sexual pelo telefone? Não interessa, era um abuso. A funcionária, cuja beleza era fato notório, precisava esclarecer partes de um memorando. Do outro lado da linha, o sujeito, que também era casado, fez a contraproposta. Pra cada pergunta feita por ela, ele faria outra. Precisada da informação, ela ia se humilhando, como se os sussurros pudessem tocar diretamente a pele, ultrajando-a:

“O que esse dado significa na confecção da nossa proposta?” – “Você tem uma voz de criança, quantos anos tem?”

“Eu não entendi essa parte, o que significa ‘é defeso’?” – “Você é loira?”

Cobrindo férias na recepção, mesmo pendurado ao telefone, ele pôde distinguir um deboche:

“A partir de hoje, não posso mais pedir às minhas funcionárias nem pra fazer café do jeito que gosto. Isso pode ser assédio. Essas mulheres estão ficando abusadas! Se até as policiais estão denunciando, o que dirá das minhas meninas?”

As próprias mulheres, ao redor dele, riram da piada. Marcílio também sorriu. De incredulidade.

Foi quando achou a solução. Transparecia sorriso, alegria e alto astral, mesmo quando recebia essas doses de preconceito. Marcílio retribuía com graça, mesmo estando tomado de fúria por dentro.

São tempos ingratos, de muita aparência.

José Eduardo Brum

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