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Clara, como assim?

Clara, como assim?

Clara tinha oito anos quando ganhou um bambolê de presente de sua mãe. A menina, que encantada ficou, nunca mais parou de rodar e rebolar. Cintura, pescoço, braços e pernas. Seu corpo inteiro rodava e rebolava. Clara cresceu, rodando e rebolando sem parar. Procurou uma escola de circo. Pronto! Encontrou um jeito adulto de manter seu bambolear. Passou a se apresentar em festas e eventos. Que vida bacana! “Essa era uma forma de me sustentar, rodar e rebolar!”, pensava ela com alegria.

Sempre com um quê de moderninha e queridinha. Clara era livre. Daquelas a bradar: corpo meu, minha lei! Cansada das imposições da cultura da beleza, deixou crescer pelos no sovaco. Uma rala penugem, que quase não chamava atenção. Estava feliz consigo mesma! Sentia-se libertada. Depilação nunca mais!

Certa vez, ao se apresentar, quando levantava os braços para rodar e rebolar, ouviu: “porca!”, gritou incomodado um misógino barbudo da plateia ao ver os pelos na axila de Clara. “Sua mãe não te ensinou a fazer sua higiene não?”, berrou uma preconceituosa. “Que falta de vergonha uma mulher com sovaco cabeludo!”, escandalizou- se uma conservadora. “Tá querendo ser homem?”, inquiriu um machista.

Assustada com tanta agressividade, cabisbaixa recolheu seu bambolê e parou de rodar e rebolar. Arrasada, não sabia como juntar seus cacos. Ficou despedaçada!. Deixou de sair de casa. Porém, quanto mais o tempo passava, mais aumentava a vontade de rodar e rebolar. Depois de muita insistência, Clara se permitiu voltar a se apresentar, rodar e rebolar. A plateia era formada, na maioria, por meninas.

Vocês deveriam saber que vocês são lindas do jeito que vocês são!, disse Clara antes de começar a rodar e rebolar. Naquele instante, ela entendeu que jamais deixaria de rodar e rebolar. A partir dali, cada apresentação sua seria para dizer aos outros que cada um pode ser o que quiser e ser feliz da maneira que desejar. Ela seguiria pela vida a rodar e rebolar, rodar e rebolar, rodar e rebolar…

Marcos Araújo

Paçoca

Paçoca

Ele vivia na rua há quase doze anos. Já tinha perdido suas referências familiares se é que algum dia as tivera. Estava com 38 anos. Cara encovada, pele enrugada, esperança quebrada. Lembrava que havia sido pai, mas só viu a menina uma única vez. Era uma lembrança vaga, que já não valia a pena. Mas apresentava um sorriso no olhar, quando, quase raramente, a memória insistia em lembrar-se da criança. Era o que lhe restava de humanidade. Costumava, nos últimos tempos, ter seu canto debaixo do viaduto Ramirez Gonzalez, na Zona Norte.

Estava acostumado a sobreviver com pouco. Um pedaço de pão, tão duro às vezes que era necessário roê-lo. Para tanto, usava cinco dentes que lhe sobravam na boca e ainda era preciso ter cuidado para não atiçar algum nervo exposto. A dor infernal, quando aparecia, era curada com cachaça, cuja garrafa, nunca vazia, estava sempre colada ao corpo. Havia sempre um trago pras horas de maior fome, quando batia o desespero! Depois o delírio! Para se deitar, um bom papelão retirado do lixo de supermercado. Era como forrava sua cama de cimento.

Sua companhia de todas as horas era uma cadelinha. Paçoca foi o nome escolhido para a parceira. Fiel, a cachorra deixava acesa no interior daquele homem ainda algo de sensibilidade. Ela mantinha o coração dele aquecido da frieza do mundo. Uma vez quiseram levá-lo para um abrigo, mas sem Paçoca. Não aceitavam animais. Preferiu então ficar na rua.

Para ganhar trocado, ele percorria as ruas puxando carrocinha à cata de material que pudesse ser vendido no ferro velho. A maioria das pessoas não sabe que lixo tem valor! Nessa sua busca, percebeu que, há muito, sua presença não era notada. Olhares alheios evitavam cruzar com os dele. Sou o homem invisível!, costumava pensar.

Certo dia, ao passar em frente a uma casa. Surpresa! Uma senhora pediu para que ele esperasse.

— Que tristeza de situação! Deve estar com muita fome! — concluiu a mulher.

Ela entrou como se fosse buscar algo para alimentá-lo. Ele vislumbrou que, depois de muitos dias, iria comer comida de verdade. Sua boca se encheu de água. Ao retornar, a senhora entregou um saco de punhado de ração.

— Sua cachorrinha está muito magra! Você precisa dar a ela o que comer todos os dias! — disse a moradora da casa em tom de advertência.

Apesar da ternura que sentia por Paçoca, naquele instante, ao ter sua fome ignorada, sua existência desinteressada, o homem experimentou, junto com a sensação de barriga vazia, a mais terrível dor de sua invisibilidade. Desta vez, foi ele que quis desviar seu olhar!

Marcos Araújo

Inabalável

Inabalável

Apresentou um largo sorriso assim que embarcou no ônibus da linha 605, destino Milho Branco, Zona Norte. Do lado de fora uma chuva desabava sobre a cidade fria, triste, feia em cores gris. Uma fila de veículos perdia-se de vista na Rua Bernardo Mascarenhas. Efeito da grande precipitação e da cancela da via férrea que havia liberado o fluxo segundos antes. Trem e chuva são sinônimos de caos na Manchester mineira.

Tinha lá seus sessenta e tantos anos. O rosto marrom meio encardido era cheio de vincos, cada qual com uma história, às vezes triste, às vezes alegre. A testa era comprida. Minguados fios brancos ainda lhe restavam na cabeça.

Como era de se esperar, teve que ficar de pé. A condução estava lotada. Jovens desatentos plugados em universos digitais ignoraram sua presença. Foi-se o tempo das gentilezas! Como não havia muitas alternativas, aconchegou-se no cantinho perto do motorista. Boa noite disse ao condutor. Não tive como escapar desse aguaceiro, mas daqui a pouco chego à minha casinha e pego aquela sopa de entulho da patroa. Essa vida é sofrida, mas é boa!

Calado, o motorista apenas lançou um olhar negligente em direção ao seu interlocutor. Fiquei mais de quatro horas hoje esperando para realizar um exame, continuou sua narrativa sem perceber o desinteresse de quem estava a sua volta. Debaixo da jaqueta de tecido sintético de cor azul-marinho, sentia calafrios na pele enrugada sob a camisa de malha de mangas compridas encharcada. Estava febril, mas não queria entregar os pontos. Aprendeu a ser forte como um touro desde menino. Essa era uma das imposições que a vida lhe dera.

No hospital a moça disse que hoje não era dia de atendimento de especialidades e que não dava nem pra marcar um exame. O homem que conduzia o ônibus continuava sem querer saber da conversa. Vou ter que voltar amanhã e começar tudinho de novo. Sair cedo de casa pra tentar ser um dos primeiros da fila. Quero realizar esse exame logo. Imagina só, estou sentindo dor e ainda nem sei o que é. O motorista silencioso seguia seu caminho.

Os jovens viajavam por meio dos fones de ouvido sem perceber que o futuro de cada um podia estar ali, escancarado, gritado, sinalizando que o tempo é imperdoável e não faz concessões! Ignorando ser ignorado, sem perder o sorriso, disse pela segunda vez:

— Essa vida é sofrida, mas é boa!

Marcos Araújo