Category Archives: Raíssa Varandas

Entre tantas manias, a da escrita prevalece.

Fardo

Fardo

O sinal estava fechado quando, através da janela do carro, percebi a pequena figura em uniforme escolar que vinha cambaleando pela calçada. Passo após passo, as pernas da menininha oscilavam sob o peso de uma sacola de tecido desproporcional ao seu tamanho. Pendurada no ombro esquerdo, a bolsa dava ao andar da pequena um aspecto desengonçado que apenas a pouca idade era capaz de tornar adorável. Logo atrás a mãe vinha carregando a mochila e a lancheira, atenta a cada movimento da filha.

A insistência em carregar a sacola que se arrastava pelo chão, em contraponto com o aparente desapego que a criança destinava ao restante do material escolar, demonstrava que ali dentro guardava-se algo especial. Um segredo ou um pequeno tesouro. Curiosa, apertei os olhos e tentei desvendar as palavras bordadas no tecido azul: “Sacola literária”.

Livros, era esse o tesouro que tombava o corpo da menina. Com um movimento involuntário, virei o pescoço e encarei o meu próprio ombro, constantemente dolorido. Percebi no andar da pequena o mesmo andar coxo que eu mesma traçava pela vida. Ora a perna esquerda, ora a direita, sempre se torcendo sob a carga de palavras que eu colhia pelo caminho. Séculos de literatura pesando o corpo.

Mas como aquela criança de andar torto e ainda assim determinado, eu me agarrava à bagagem, cada dia mais pesada, com desejo insaciável. Nos passos vacilantes o prazer de uma nova letra adquirida.

Raíssa Varandas

Gestação

Gestação

Os enjoos matinais foram o primeiro sinal. A náusea repentina que lhe contraía a garganta em repulsa ao cheiro do café. Pouco depois vieram os desejos. Sua fome ansiava por misturas de gostos que antes pareciam peculiares ao metódico paladar. Em um mesmo prato degustava Rimbaud, bulas de remédio, pichações nos muros da cidade e poemas impressos em papel de pão. Mário e Oswald de Andrade acompanhados de um livro de receitas de carnes exóticas. Generosas porções de Shakespeare refogado com as notícias de jornal e os filmes em cartaz. Os sinais, diante de olhos bem treinados, já anunciavam a nova chegada, mas para ela a certeza só veio mesmo quando sentiu que algo crescia dentro de si.

No começo era apenas uma ideia, minúscula, do tamanho de uma letra isolada em líquido amniótico. Em poucas semanas, porém, da ideia que era quase letra formou-se uma palavra completa. Era curta ainda, mas já carregava as potências da linguagem. O apetite lascivo aumentava diariamente e ela se fartava com os grandes autores, com os autores nem tão grandes assim, com a voz do piano e da guitarra, com as piadas online e os anúncios nas revistas. Tudo que era texto, tudo que era língua, som ou cor ela tragava para dentro de si. Depois vomitava, porque a gula fora intensa.

Entre o comer e o vomitar, a palavra dentro dela, que antes era só ideia, deu origem a outra. E das duas palavras unidas, alinhavadas com fio bambo, outras tantas brotaram costurando-se em possibilidades. A ideia embrionária multiplicou-se em tecido de letras preparando-se para o parto: surgiu a escrita no papel. Mas a gestação de um texto é sempre infinita, ainda que dure um dia ou nove meses, ela se perpetua pela vida.

Raíssa Varandas

Rouxinol

Rouxinol

“Se a noite fosse feita para dormir ela não seria tão bonita”. Foi esse o argumento que usou quando o médico disse que receitaria um remédio para que ela regulasse o sono. A verdade é que não sofria de insônia, pelo contrário, dormia profundamente durante oito horas ou mais. A diferença é que preferia adormecer durante as manhãs enquanto reservava as noites e madrugadas para viver. Um amigo, certa vez, a chamara de rouxinol. Rouxinol porque, diferente da cotovia que costuma cantar no amanhecer, esse pequeno pássaro de lamento melódico dedica o seu canto à noite. E isso é o que ela era, uma pequena ave noturna cuja música e caça só se realizavam sob o veludo negro. Mas à justificativa poética dela o médico lançou argumentos científicos, intercalando termos técnicos com puxadas de orelha extraídas dos grossos livros de medicina. Nesse embate entre poesia e linguagem objetiva a lírica saiu perdendo e, depois de alguns suspiros, revirar de olhos e entortar de lábios, a moça acabou aceitando a medicação para dormir. Para a noite o sonho, para o dia a vida, assim seria.

Desde então todas as noites ela extraía uma pequena rodela branca da cartela de 30 comprimidos e engolia com um gole generoso de água. Quando voltava a abrir os olhos percebia que a manhã já se intrometia pelo quarto. Assim iniciou-se sua nova rotina, tediosa e diurna, de noites bem dormidas e dias produtivos, plenamente adaptada ao ritmo comum dos homens, esses seres solares. Ou foi o que lhe pareceu, até começar a notar alguns detalhes estranhos: um poema com sua letra deixado em um caderno aberto em cima da mesa, um desenho que não se lembrava de ter feito, uma mensagem enviada do seu celular da qual não recordava, uma ligação… Toda nova manhã, ao acordar, uma alteração quase imperceptível ocorrida durante a noite se fazia notar, fosse um móvel fora de lugar, fosse a louça suja na pia. Não demorou muito para que ela percebesse que, em um estado de sonambulismo induzido pelo remédio, andava à noite pela casa se ocupando das suas tarefas costumeiras, escrevendo, conversando, comendo. Ela, esse pequeno rouxinol, que mesmo envolvida pelo sono artificial fazia da noite o momento do seu canto.

Raíssa Varandas