Bênção

Bênção

Face ao vis à vis de prédios que compõe a paisagem da minha janela, encontro essa casa. Me lembrei da minha avó, quando recebia a santinha em casa. O recebimento da santinha era um acontecimento: umas dez senhorinhas vinham trazendo a santinha da igreja. Elas rezavam o terço pra Virgem Maria, se despediam da santinha e voltavam no dia seguinte. Todas, todos os dias, no mesmo horário, durante uma semana. Eu detestava a semana da santinha. O som da reza ressoava no forro e era tão alto que eu não conseguia ouvir o som da TV. Durante a semana da santa, nada se podia fazer em casa. 

Agradeço esse prazer nostálgico de tatear a memória sabendo que essa casinha casarão, espremida entre prediões de apartamentinhos, não virou uma farmácia, ainda é lar de alguém. Meu pai diz com certa poesia ‘os apartamentos, antigamente, eram casas suspensas. Hoje, não sei o que são’. Olhei para aquela casa com certo pertencimento de quem já viveu em casa de telha e teto de forro. Fico pensando, hoje em dia podemos facilmente quantificar as casas como essa, em que um dia vivemos. Enquanto divago, no prédio do lado direito, vejo uma senhora tomando chá com seu periquito em uma varanda 2×2. E, dois andares acima, um cão sofrido chora um choro doído de quem passa seus dias confinado na varanda de mesmo tamanho, 2×2. 

Um carro de som entra na rua. Achei que tocava jingle de campanha eleitoral, mas são cânticos católicos. O pastor da igreja que fica também ao lado direito da casa, embaixo do prédio, não deixa passar ileso nenhum possível fiel. Distribui abraços sem máscara, diz ‘quem tem o Senhor no coração não precisa temer a peste’. Ele está à procura de público para o espetáculo da fé. Acredito que o carro de som dividiu a atenção dos que já eram poucos e o pastor sentiu que precisava reagir. Logo acima da igreja, um menino de aproximadamente 7 anos grita ‘fora Bolsonaro’ no auge de sua fúria infância. Acho que a confusão, a gritaria do pastor somada ao carro de som e o choro do cachorro fizeram com que ele acreditasse que era um panelaço contra o presidente. Eu, aqui da janela, quero gritar ‘fora Bolsonaro’ e também dizer para o pastor que o Senhor não está nas cédulas, mas a confusão é tanta que não sei qual grito calo para que o outro possa sair. Minha mãe me chama para o café. Por alguns minutos, o distanciamento não me pareceu tão social. Não sei, mas ver esse menino gritando da varanda, bem em cima da igreja, faz com que eu me sinta abençoada.

Tassiana Frank

Catarse

Catarse

Ele vivia deprimido. O sono só vinha à base de antidepressivos, depois de, resistentemente, apagar a tela luminosa. Até que se deu conta de que desperdiçava tempo demais na internet. Sem reparar como havia acontecido, tinha se afastado da família e dos amigos. Uma lástima!

Percebeu que há muito tempo não sentia o ardor do sol sobre a pele, a brisa ao andar de bicicleta, a alegria de bater papo na calçada de casa até tarde da noite, a boa companhia de um livro. Havia se perdido!

Tomou consciência de que aquela vida on-line jogada na sua cara e na das outras pessoas era rasa demais. Exposição de futilidades, ostentações e arrogâncias. Decidiu-se: excluiu sua conta do Facebook.

Desde então os emojis viraram emoções reais. Os likes, abraços apertados. Cada post, afeto a ser partilhado.

Reencontrou-se! Fluoxetina, Paroxetina, Citalopram, Escitalopram e Sertralin. Todos desceram pela privada! O sono voltou a chegar, mansinho, a cada página virada.

Marcos Araújo

Ela cultivava o gosto pela dúvida e a incerteza

Ela cultivava o gosto pela dúvida e a incerteza

Ela não tinha certeza de quase nada. Sentia uma atração quase fatal por expressões que produzissem dúvidas. Ou melhor, adorava locuções verbais, orais ou escritas, que traduzissem e demonstrassem suas incertezas, incluindo aí as improbabilidades de sua vontade sem desejos. Para ela, a dúvida era o fundamento da pureza da mente e da alma.

Assim, o modo subjuntivo era a configuração sintática que mais lhe fascinava. Casava bem com suas suspeitas e desconfianças, de tudo e de todos, e principalmente dela mesma.  Vivia exercitando a gramática para arranjar ocorrências linguísticas em que as formas conjuntivas pudessem ser cultivadas… E, para isso, não economizava oportunidade.

Lia romances, contos, crônicas e reportagens em busca de citações que contemplassem seu gosto pela imprecisão. Em qualquer ambiente ou situação, caso tivesse oportunidade e a criatividade fosse pródiga, aproveitava os três tempos gramaticais, presente, pretérito e futuro, para produzir efeitos de sentido em consonância com sua vocação para a suposição.

Sempre que havia a possibilidade de praticar uma ação que pudesse ter implicações mais sólidas e duradouras em sua vida, fazia questão de usar em seu favor o benefício da dúvida e caprichava na incerteza: “Se eu realmente vier a fizer isso…”. Assim é que, com o passar dos anos, sua relação com a improbabilidade foi tornando-se incorrigível. Duvidava até dos fatos acontecidos e examinados pela história. Gostava de transformar um fato verdadeiramente ocorrido em um episódio incerto… Sabia-se lá a quem poderia interessar tornar um fato não sucedido em uma ocorrência autêntica…

Quanto ao futuro, aí é que ela abusava da (im)probabilidade… Sem que nem para quê, lá estava ela alinhavando conectivos duvidosos. “Se eu fizer isso, acontecerá aquilo… Se eu não fizer, poderá advir isso… Ou talvez não…”. Sempre que brotava em sua mente um “Quando eu…” ou um “Se eu…”, surgia em sua memória um dito que leu num desses livros de autoajuda: “Que seu sim seja sim, que seu não seja não… E que não exista um talvez!” Como assim? Não existir um talvez? Nunca… A vida se tornaria impossível! Parou de ler o livro imediatamente. Odiou aquele autor e desqualificou seus escritos.

Até que um dia o Amor tomou conta de seu coração, mente, corpo, alma… e outras expansões espirituais, caso existam… E as extensões físicas sentiram mais ainda os efeitos daquela paixão sem limites ou restrições. Desde que o relacionamento se iniciou, o namorado percebeu que as frases que ela enunciava eram um tanto quando soltas e abertas: “Contanto que você queira… Se é bom pra você, é bom pra mim… Ainda que você não me espere… Antes que eu me esqueça… Tomara que você goste…”.

Aquele gosto pela dúvida, como um vírus, contaminou o namorado, que depressa e de forma intensa, absorveu aquele hábito. Poucos meses depois do início do namoro, o rapaz também estava mergulhado na dúvida. Após dois ou três episódios de discussão, ele entrou em confusão mental sobre o grau de afinidade que havia entre eles. E após uma noite de amassos, cheiros, beijos e abraços, ele se saiu com essa pérola de frase: “Mesmo que a gente continue tentando, acredito que nosso relacionamento não dará certo!…” Ela, sem tremeluzir, respondeu na lata: “Será?!”.

Lutero Rodrigues Bezerra de Melo