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Toda madrugada

Toda madrugada

Exatamente às 4h20 da madrugada ele acordava, olhava o relógio e levantava para beber água. Da janela da cozinha via as luzes dos vizinhos de perto e de longe, reconhecia as que ficavam sempre acesas, percebia as diferenças nas outras, sabia distinguir entre elas em cada noite da semana. Porque toda madrugada arrastava pontualmente a insônia até a cozinha, enchia e esvaziava o copo d’água, observava a vizinhança, ouvia os sons da noite e voltava a dormir. Toda madrugada isso acontecia. Acordava e olhava o relógio: sempre 4h20. Levantava, bebia, via, ouvia e dormia. Toda, mas toda madrugada, por anos, sem exceção. Até que se perguntou por que isso acontecia? Sem resposta, desligou o despertador.

Gustavo Burla

Sem tempo, irmão

Sem tempo, irmão

O decreto publicado no diário oficial do município estabelecia que, a partir daquela data — embora, por coerência, não houvesse dia, mês ou ano na publicação —, a noção de tempo estaria abolida dos limites da cidade, restando apenas o espaço como conceito físico-geográfico a determinar as relações. Distâncias como uma meia horinha de caminhada e fica a cinco minutinhos daqui foram proibidas e, em vez do brado de hora do almoço ao meio-dia para chamar a meninada que se afobava atrás do pique, as mães passaram a ter que gritar das janelas que a refeição teria lugar no sol de meio do céu. Das crianças passou-se a comemorar não o primeiro aniversário, mas o primeiro passo de metro que conseguissem dar. E nos velórios o desejo de paz eterna teve de ser substituído pelo de um descanso pacífico na imensidão. Até na igreja o sacristão calou o sino e, igualmente sem referência ou propósito, os galos de todos os quintais e sítios desaprenderam a cantar. Sempre virou por toda parte e São Nunca, o padroeiro, tornou-se o Santo de Lugar Algum. 

Táscia Souza

Réveillon

Réveillon

Maldito ano que não acabava!

Chegaria 1h da madrugada, mas não chegava a meia-noite.

Um ano que foi uma pausa forçada – para muitos.

Um ano que foi infinito – para tantos.

Um ano que foi o fim – para milhões.

Desgraça.

Isolamento.

Mortes.

Desemprego.

Política necrófila.

Pandemia.

Mortes.

Cansada de olhar o relógio, deitou.

E adormeceu – cheia de esperança.

Sonhou. Com paz. Vacina. Cura.

Com abraços. Reencontros. Novos encontros.

E, quando acordou, pegou logo o celular para conferir a data:

32 de dezembro de 2020.

Gilze Bara