Frustração sabor hortelã

Frustração sabor hortelã

Comprou caderno. Pasta. Estojo. Canetas. Uma de cada cor, das tradicionais azul-preta-vermelha até outras de cores mais infantis e vivas, com cheiro de chiclete de hortelã e tutti-frutti. E também lapiseira, borracha, régua e compasso, embora não soubesse bem para que serviria um compasso numa aula de literatura, mas costumava ter um na bolsinha em seus tempos de menina e isso bastava. Era a primeira vez em anos que voltava a pôr os pés numa sala de aula – em anos, não; em décadas – e só o cheiro de álcool que emanava do quadro branco no qual as palavras escritas com pilots coloridas haviam sido esquecidas no dia anterior era capaz de rejuvenescê-la. Em sua época não havia quadro branco nem pilots coloridas, esses símbolos da pós-modernidade. Em sua época havia giz e pronto; e depois do giz, marido, filhos, a troca do emprego pela fraldas dos filhos, suas papinhas, uniformes, merendeiras, vestibulares, formaturas, casamentos e até seus próprios filhos. Os filhos dos filhos. Uma vida inteira de outras pessoas rabiscada a giz por sobre os traços apagados de cal de sua própria vida, como num quadro negro sobre o qual um aluno insolente passou a mão.

Por isso resolveu, apesar do esgar de desdém do marido, dos filhos, dos filhos dos filhos e até do espelho, voltar a estudar. Desengavetou o diploma amarelado de normalista há muito abandonado, enfrentou um sem-número de concorrentes que podiam ser seus filhos ou mesmo os filhos dos filhos, e partiu para a universidade. Nunca é tarde para novos traços, pensou, ainda mais se cheirarem a um coquetel de álcool com tutti-frutti. Ou hortelã. E não é esse que deveria ser o aroma da vida inteira?

Só não contava que a professora não apareceria no primeiro dia.

Táscia Souza

One Response

  1. Gostei de
    “Uma vida inteira de outras pessoas rabiscada a giz por sobre os traços apagados de cal de sua própria vida, como num quadro negro sobre o qual um aluno insolente passou a mão.”
    Desses trechos legais que faz tudo valer a pena.
    Pena que no fim a professora não foi. Tirou todo o lirismo da coisa…
    Abraços…