Category Archives: Hupokhondriakós

Cartão de crédito grátis

Cartão de crédito grátis

A maioria das pessoas aprendeu a usar a internet para não ter que sair de casa durante o período de isolamento social. A maioria continuou usando, aprendeu que era prático. Ele também aprendeu tudo isso.

Era o grande conhecedor das promoções, navegava pelos leilões e preços baixos, todo dia era black friday no celular dele. E era esperto demais para clicar em links de SMS, sobretudo no que chegava todos os dias oferecendo gratuitamente o cartão de crédito de um banco que ele nem conhecia. A mensagem chegava a cada dia em um horário diferente e ele sempre apagava com celeridade.

Por trás da mensagem estava uma empresa de monitoramento de uso da internet que sabia quando a mensagem era recebida e apagada. Sinal de que o usuário estava conectado e atento naquele instante, pronto para receber o link de algum produto com preço especial que em outro momento da vida ele jamais compraria. Ou usaria.

Gustavo Burla

Dese(sc)r(i)tora

Dese(sc)r(i)tora

Desaprendi a escrever. Continuo sabendo juntar as letras tal qual ensinado na infância, tendo ciência de que bê mais a é igual a bá, de que “o rato roeu a roupa do rei de roma” não dá conta de todos os sons que o erre pode ter e de que meu nome tem um dígrafo consonantal com o qual a maioria das pessoas não sabe lidar mesmo quando soletro. Também ainda sei pontuar, ou ao menos acho que sei, e quase nunca cometo o deslize de separar o sujeito do predicado, ou de deixar os apostos mais comuns desprovidos da guarda costumeira das vírgulas, a não ser por pura desatenção. Mas escrever, escrever mesmo — aquilo que se faz não com o deslizar do lápis sobre o papel, ou com o pousar dos dedos sobre as teclas, mas com ser tempo mais do que tê-lo —, isso já não sei mais.

Táscia Souza

Ruído branco com bolas pretas

Ruído branco com bolas pretas

Toda tarde subia o som da rua em horários distintos. Apenas o horário mudava, o som era sempre o mesmo. Umas notas num cavaquinho e outras notas na voz do artista. As mesmas, sempre as mesmas.

Tinha letra, do jingle do presidente a Raul, ele tocava todas. Todas iguais. Todas. Iguais. Todos. Os. Dias. Debaixo da janela do escritório.

O trabalho era cheio de problemas, dúvidas, questões, processos, atendimentos e mais atendimentos. Nada fácil, porque tudo com gente. Muita gente, da cidade toda.

Nada pior do que o som que subia com cavaquinho e voz, nem sempre samba, mas de uma nota só.

Pegou a faca da cozinha e desceu. De escada, pra não perder o ritmo. Foi direto até o artista e viu um panda.

“Por que tá vestido de panda!?”

“As crianças gostam.”

Porra, que mundo injusto!

Gustavo Burla