Category Archives: José Eduardo Brum

Doente por tudo aquilo que sempre se torna pessoal.

Aritmética das palavras

Aritmética das palavras

Começou sem querer, numa brincadeira sacana. Com oito anos, prodígio, na hora do intervalo, foi sinalando todos os erros de grafia, pontuação, acento e concordância dos trabalhos dos coleguinhas da turma da frente, pendurados nas paredes. Os pais, tão nervosos por agradar pela abstinência de afeto, fingiram não ver as marcações vermelhas grosseiras. Ele, por sua vez, ganhou uma suspensão e um sorriso orgulhoso da tia que serviu de combustível para o vindouro vício.

Na adolescência, assinava uma gama de revistas, das típicas de adolescentes, passando pelas de curiosos e cinema, além das informativas, tidas como imparciais. Lia de cabo a rabo, anotando os erros para depois escrever para a seção de “carta aos leitores”. Aproveitava para dar uma aula de português aos jornalistas que não tiveram o esmero de aprender bem a ferramenta de trabalho.

Prestes a concluir o ensino médio, não largou as aulas de redação. Tinha um prazer enorme, na madrugada, de corrigir silenciosamente cada texto. O gozo maior vinha na hora de debochar, digo, apontar os erros de cada aluno antes de explicar o jeito correto. Irradiava tanta vontade de ensinar que chegava até a ser irreverente.

Tudo mudou com o temido vestibular, que não serviu de bússola. Desde antes, nas entranhas, estava o desejo de fazer Letras. A importunação e a cobrança familiar o fizeram mudar. Achavam que ele era inteligente demais pra se desperdiçar como professor. Merecia profissão de mais prestígio e dinheiro. Por revolta, optou pelo extremo, engenharia.

Daí, a fórmula de vida foi certeira e natural. Tornou-se primeiro da turma, teve bons estágios, pôde galgar sempre melhores empregos, virou um bem sucedido profissional, formou família, criou pessoinhas atenciosas com a língua. Como de resto da equação, ficou o saudosismo da época em que o coração pulsava numericamente no limite pela lida com as letras.

José Eduardo Brum

Dis-par-idade

Dis-par-idade

O neném chora por todos os motivos, quase nunca por dor.

Quando a gente beija, sente mais em baixo, ou no corpo todo. Com o choro, também.

Horas estudando fazem doer mãos, pescoço e coluna. A cabeça só fica mais afiada.

A criança cai, esborracha e se rala. Tudo cura, menos a vergonha.

Um soco, um chute, um tapa não injuriam no ponto de contato. Mancham os antecedentes criminais; quiçá a alma, a consciência.

Abrimos a boca para comungar e sermos salvos. Porém, não conseguimos fechá-la, continuamos fofocando, julgando, proferindo inverdades, antes de a missa acabar.

Um dia, o coração para, aliviado. Anos de tantos desafios e lutas, bombeamentos e relaxamentos, remorsos e júbilos, precisa enfim descanar. Então, o resto do corpo entra em choque, sucumbe, desgostoso.

José Eduardo Brum

Cortes transformados

Cortes transformados

Marcílio achou que perderia sua alma aos poucos. A primeira vez se deu nos corredores, por meio de um ato jocoso de seus pares. Assim que saiu do banheiro, escutou:

“Você já foi a um enterro de bicha?”- O pescoço virou automaticamente a tempo de ver a negação de cabeça. – “Que classe mais desunida!”. – O piadista e o interlocutor caíram na gargalhada. Ele teve o primeiro corte em si.

Dias depois, presenciou um assédio moral. Ou sexual. Podia ser sexual pelo telefone? Não interessa, era um abuso. A funcionária, cuja beleza era fato notório, precisava esclarecer partes de um memorando. Do outro lado da linha, o sujeito, que também era casado, fez a contraproposta. Pra cada pergunta feita por ela, ele faria outra. Precisada da informação, ela ia se humilhando, como se os sussurros pudessem tocar diretamente a pele, ultrajando-a:

“O que esse dado significa na confecção da nossa proposta?” – “Você tem uma voz de criança, quantos anos tem?”

“Eu não entendi essa parte, o que significa ‘é defeso’?” – “Você é loira?”

Cobrindo férias na recepção, mesmo pendurado ao telefone, ele pôde distinguir um deboche:

“A partir de hoje, não posso mais pedir às minhas funcionárias nem pra fazer café do jeito que gosto. Isso pode ser assédio. Essas mulheres estão ficando abusadas! Se até as policiais estão denunciando, o que dirá das minhas meninas?”

As próprias mulheres, ao redor dele, riram da piada. Marcílio também sorriu. De incredulidade.

Foi quando achou a solução. Transparecia sorriso, alegria e alto astral, mesmo quando recebia essas doses de preconceito. Marcílio retribuía com graça, mesmo estando tomado de fúria por dentro.

São tempos ingratos, de muita aparência.

José Eduardo Brum