Category Archives: Gilze Bara

Home office?

Home office?

Acordo.
Checo as mensagens no celular.
Leio as notícias.
Tomo café.
Começo a responder as mensagens no celular.
Ligo o computador.
Gravo aulas. Faço conferências.
Tiro os alimentos da geladeira pra fazer almoço.
Checo os e-mails. Respondo.
Cato feijão.
Respondo mais e-mails. Mais mensagens.
Pago uma conta online.
Faço o almoço enquanto o celular carrega e a TV está ligada para saber mais notícias.
Almoço.
Mais e-mails.
Dou atenção à família.
O telefone toca. Trabalho.
Faço um cafuné nas filhas.
Reunião online.
Faço um pedido online de entrega de alguns itens.
E-mails.
Mensagens.
Outra reunião online.
Higienizo tudo o que pedi.
Checo os novos e-mails e as novas mensagens. Respondo.
Faço um lanche pra família.
Corrijo exercícios.
Mais e-mails.
Mais mensagens.
Tomo banho.
Notícias.
Vejo um pouco da série que não consigo acabar.
Ou então leio um trecho do livro que não consigo acabar.
Deito. Custo a dormir.
Rezo. Agradeço. Peço.
Enfim durmo.
Sonho.
Acordo.
E o looping recomeça.

E eu que um dia tive uma visão romântica de home office…

Gilze Bara

Déjà vu de si

Déjà vu de si

Como a situação beirava o insuportável, ela cedeu e foi ao médico.

– Em que posso ajudar?

– Abri a caixa de Pandora, ou melhor, a minha caixa de fotografias, do tempo em que ainda revelávamos e imprimíamos.

– Sim, e o que houve? Crise de rinite?

– Só se for rinite no coração, doutor… Não estou suportando olhar as fotos e lembrar dos momentos que elas eternizaram.

– Mas por quê?

– Porque eram momentos que estavam esquecidos na minha memória. E eu tô puta com isso. Como havia esquecido tudo que vivi e senti? Como consegui ligar o piloto automático e simplesmente seguir sem lembrar??? Minha memória me traiu. Duas vezes. Primeiro, por esquecer tanta coisa da minha vida. E, depois, por lembrar. Como vou continuar vivendo lembrando de tudo aquilo, sentindo um pouco do que senti em cada momento retratado?

– Isso é simples. Toma este psicotrópico. Duas vezes por dia, mas nunca em jejum. Ele vai deixar sua memória anuviada. Nada de lembranças!

– Por quanto tempo?

– Pra sempre.

Gilze Bara 

Verde que não quero ver-te

Verde que não quero ver-te

Ele sabia.

Não importava o diagnóstico que os pacientes tivessem. Quando completavam 96 horas no CTI, ele sabia os que viveriam e os que morreriam – os que resistiriam e os que partiriam. Era um misto de sinais, mas tudo guiado pela cor do paciente. Quando, após 96 horas, eles ficavam com aquela cor esverdeada, já era. Os médicos podiam tentar de tudo, que nada adiantava. O esverdeado parecia entranhar e nada mais cedia.

Um dia, quando lá chegou uma tia queridíssima, ele tramou um plano para se a cor aparecesse.

Apareceu.

Ele então sacou o estojo de maquiagem que havia surrupiado da irmã, seguiu o tutorial com mais likes que havia achado na web e fez a base facial mais perfeita que conseguiu. Até rosadas as bochechas quase não mais perceptíveis da tia ficaram.

Mas esverdeou.

Gilze Bara
(da série Minicontos e minicrônicas de CTI – ficcionais, reais e confessionais)